Autor: José Poças (Médico Internista e Infeciologista; autor do Livro “Ode ou Requiem”; co-autor e editor do Livro “A Relação Médico-Doente” da OM, Provedor da Pessoa Doente da LAHSB; Autor do Site josepocas.com que tem como lema Medicina: Cultura, Ciências e Humanização)
I)- Resumo
“A vida só tem história do princípio para o fim, se a tiver do fim para o princípio” (Virgílio Ferreira, 1916-1995, escritor português)
“O sofrimento é tudo o que há de mais absurdo na terra” (Jean Vercors, 1902-1991, escritor francês)
“A morte é um sono sem sonhos” (Napoleão Boanaparte, 1769-1821, imperador francês)
A recente decisão parlamentar sobre a questão da morte antecipada a pedido do doente, parece-me ser merecedora de uma discussão bastante mais aprofundada do que a que foi efetuada até ao momento. Neste sentido, considerando que a descontextualização dos bons princípios, mesmo que bem-intencionada, pode transmitir uma noção de impessoalidade contraproducente aos objetivos que se pretendem atingir, acho pertinente dar um testemunho pessoal através da revisitação, para este texto, de um conjunto de histórias clínicas verídicas de doentes, algumas que expus no meu livro “Ode ou Requiem”, por serem particularmente exemplificativas do que é, no concreto, o sofrimento, o encarar da morte e o prazer de viver, para as pessoas de carne, osso e alma feitas. Na verdade, trata-se de evocar cenários em que a prática dos verdadeiros cuidados paliativos de que muitos doentes, como alguns dos que refiro, vêm a necessitar, aqui entendidos da forma o mais abrangente e lata possível, nos quais devemos incluir, certamente, certos aspetos técnicos inerentes, ainda que tal não deva ser impeditivo que constatemos que o resultado que se pretende obter é tão mais eficazmente conseguido, quanto as atitudes melhor brotarem do genuíno sentimento de solidariedade e de comiseração do próprio médico envolvido, onde a proximidade física e afetiva entre este e o doente é determinante, porque a indiferença e o distanciamento entre estes dois personagens nunca deverão vir a fazer parte da essência do ato médico e da relação médico-doente. Assim, deve enfatizar-se que é vital que ambos sejam intemporalmente salvaguardados, enquanto precioso património de toda a Humanidade, pelo que se exige que paremos para refletir, enquanto profissionais e cidadãos, nos caminhos para onde caminha a Medicina, matéria que a todos deve interessar, tal como pretendeu aludir Milton J. Lewis, no seu livro, “Medicine and care of the dying”, ao escrever, de uma forma lapidarmente Osleriana, “parece que a medicina moderna dá mais importância à cura da doença do que ao cuidar do doente”.
The recent parliamentary decision on the issue of the question of early death at the patient’s request seems to me to be worthy of a much more in-depth discussion than that which has been carried out so far. In this sense, considering that the decontextualization of good principles, even if well-intentioned, can give an idea of a counterproductive depersonalization of the objectives that are intended to be achieved, I think it is important to give a personal testimony through the revisiting, for this text, a lot of true clinical stories of patients, some of them that I exposed in my book “Ode ou Requiem”, for being particularly exemplary of what is, in concrete terms, suffering, facing death and the pleasure of living, for people made of flesh, bone and soul. In fact, it is a matter of remembering scenarios in which the practice of real palliative care that many patients, such as some of those I refer to, come to need, understood here in a sence as broadly as possible, in which we must certainly include some technicial aspects that are inherent, although this should not be a deterrent if we find that the result we intend to obtain is so much more effectively achieved, as the attitudes better arise from the genuine feeling of solidarity and commiseration of the involved physician, where the physical and emotional proximity between him and the patient is decisive, because the indifference and the distance between these two persons should never become part of the essence of the medical act and the doctor-patient relationship. Thus, it must be emphasized that it is vital that both are timelessly safeguarded, as a precious heritage of all Humanity, which is why we are required to stop and reflect, as professionals and citizens, on the paths towards which Medicine, a matter that should interest everyone, as Milton J. Lewis intended in his book, “Medicine and care of the dying”, to write, in a Oslerian way, “it seems that modern medicine gives more importance on curing the disease than on caring for the patient ”.
Palavras Chave / Key words: Vida; Sofrimento, Morte; Imortalidade; Life; Suffering; Death; Immortality
II)- Introdução
“A arte da vida é a arte de evitar a dor” (Thomas Jefferson, 1743-1826, ex-Presidente do EUA)
“Não há mérito nenhum em ter simpatia pelo sofrimento” (Oscar Wilde, 1854-1900, escritor irlandês)
“A morte é doce para quem a vida é amarga” (Tommaso Campanella, 1568-1639, filósofo italiano)
Num momento em que existem muitas e acaloradas opiniões publicamente expressas acerca do assunto da despenalização da morte antecipada a pedido do doente, tendo obviamente já pensado muito sobre este assunto, quer na qualidade de simples cidadão e de familiar, em especial desde que comecei os meus estudos universitários e, mais ainda, depois de ver adoecer os meus dois avós, tal como, posteriormente, também enquanto médico que sou há quase quatro décadas, achei que, instado informalmente que fui, diversas vezes, acerca do meu posicionamento relativo ao lado desta “barricada” em que me situaria, já que tendo por hábito escrever regularmente artigos acerca das questões relativas à saúde, entendi que deveria estruturar o meu pensamento acerca desta matéria e, escrever algo que brotasse do meu íntimo e sem a menor preocupação de reunir qualquer espécie de consenso prévio ou a posteriori.
Tudo, na natureza, é feito de ciclos, tal como aquilo que os Humanos fazem. A vida dos seres vivos e, por maioria de razão, a da espécie humana, são disso eloquente exemplo. Nascer, crescer, envelhecer, adoecer e morrer é a concretização acabada desta proposição. A matéria sobre a qual se está a legislar e se pretende aqui refletir, é necessário frisar, foca-se precisamente sobre o assunto mais importante da nossa existência individual e coletiva: a Vida. Sendo um assunto médico, sem sombra de dúvida, extravasa largamente, no entanto, o seu âmbito, constituindo-se, pois, mais do que qualquer outro, como tema de cariz iminentemente espiritual e civilizacional e, logo, por inerência, de cidadania em toda a sua plenitude, razões que suportam, então, segundo alguns, a realização de um referendo popular.
Assim, convém, em termos daquilo que vulgarmente designamos por civilização ocidental, revisitar alguns conceitos e factos, embora reconhecendo que outras civilizações pensaram igualmente, a seu modo, sobre esta temática e que, têm, em termos do cosmos humano, propostas de reflexão antropologicamente tão válidas como a que corresponde à da herança civilizacional onde nasci, cresci e vivo, assentes numa história de tradições e de rituais que importa conhecer e respeitar. Neste sentido, referiria que na Grécia antiga, onde a nossa civilização ocidental tem uma das suas origens mais remotas e sólidas, atendendo ao facto de os meios tecnológicos serem quase inexistentes e muito rudimentares, o conhecimento da Medicina obtinha-se essencialmente através da capacidade de observar e de pensar, fundindo-se, pois, em parte, com a própria filosofia. E, assim, terá surgido a ética. Numa fase posterior, procurou adquirir maior identidade e capacidade de entendimento dos fenómenos da saúde e da doença, utilizando o próprio corpo humano como matéria de estudo. E, assim, terão nascido a anatomia e a fisiologia. Mas, hoje, que vivemos numa era de permanente aperfeiçoamento tecnológico, há quem pense que os conhecimentos que os nossos antecessores alcançaram são meramente supérfluos, mas nada é mais erróneo e perigoso para o nosso futuro.
Devemos compreender e aceitar, então, que permanece válida a premissa de que um dos atributos mais nobres do médico é o de ser capaz de descodificar, através da observação clínica, os estados de alma dos seus doentes. Nas expressões faciais. No olhar. Nos gestos. Aquando do cumprimento inicial. Nas entrelinhas do discurso do seu doente, para assim se encetar uma abordagem clínica humanizada e individualizada, no sentido das decisões que forem tomadas serem bem aceites pelo mesmo, por este as sentir como sendo fundamentadas e isso permitir a sua necessária interiorização, depois de ter tido a possibilidade de expressar os receios, visto esclarecidas as dúvidas e respeitadas as suas idiossincrasias e vontades. Porque, se decidir e atuar, faz parte intrínseca da essência do ato médico, também temos que ter sempre presente que, por mais ciência médica que soubermos ou experiência clínica que tivermos, as suas consequências são verdadeiramente imprevisíveis, havendo que encontrar a ponderada síntese entre a nossa convicção e intenção, com a vontade que emana do conjunto de valores do próprio doente e/ou da sua família, por mais inesperado que seja o desenrolar dos acontecimentos.
Tal foi o que ocorreu no caso daquela mulher septuagenária que eu supus ser a mãe de uma jovem com limitações muito graves consequentes a uma paralisia cerebral que tive que reanimar, depois da suposta mãe se sentir quase que insultada quando eu lhe dei conta do grave prognóstico da pneumonia que a tinha acometido e lhe perguntei como queria que procedesse, pois nada sabia dos seus antecedentes e admiti como plausível que me fosse exclamar que já estaria farta de sofrer com situações idênticas, e que, desta vez, preferiria desistir, pois estava crente que nada viria a restituir a saúde da mesma. Depois de salva a doente e de a transferir para os Cuidados Intensivos, fui por si informado que tinha dez filhos biológicos e que aquela era uma que fora adotada, apesar da sua família ter uma muito modesta situação económico-social, mas que, para si, ela era de tal forma especial, que a queria viva a todo o custo, desde que tal fosse viável através das capacidades disponíveis nessa altura no hospital.
Um outro, já quase octogenário, que jamais havia visto, entrou subitamente em exaustão respiratória na sala de eletrocardiografia do Serviço de Urgência, após o que a reanimei com a prontidão possível, sem poder antecipar que, depois de o mesmo se ter auto-extubado a meio dessa mesma madrugada, iria logo escrever um soneto denominado “Paragem Cardiorrespiratória”, e, muito menos que, depois de ter tido alta clínica da enfermaria e de o ter passado a acompanhar regularmente em consulta externa, viria ainda sobreviver cerca de cinco anos e a publicar meia dúzia de livros de poemas, quando, na realidade, tinha um nível de instrução muito básico.
Ou, finalmente, aquele outro que, vendo-se a definhar dia-a-dia, vítima da SIDA, numa fase inicial da pandemia do VIH, quando não existiam antirretrovirais eficazes, depois de tratadas algumas complicações oportunistas intercorrentes, me procurou no hospital, desesperado, mas muito decidido, no intuito de me anunciar que tinha comprado uma arca congeladora vertical, à qual tinha retirado todas as gavetas e que aí se pretendia auto-congelar, pretendendo disso avisar-me para eu ir lá proceder ao seu descongelamento, logo que existissem terapêuticas eficazes disponíveis. Felizmente que um ex-interno meu, o colega Mário Parreira, que com ele conversou nesse momento, dado que eu me encontrava ausente do hospital, lhe lembrou que isso não resultaria, dado que iria deixar de poder pagar a luz à EDP, e que, por tal, apodreceria no seu interior antes de chegado o momento desejado, já que outros argumentos invocados e aparentemente lógicos não foram entendidos como um obstáculo suficiente a tão convicta e tresloucada decisão…!!! Veio a falecer algumas semanas depois, tal como muitos outros ao longo de anos, antes da investigação científica ter colocado à disposição os fármacos que hoje tão comummente utilizamos e que permitiram transformar uma infeção quase invariavelmente mortal, numa doença crónica de longíssima evolução.
III)- A Vida
“Se penetrássemos o sentido da vida seríamos menos miseráveis” (Florbela Espanca, 1894-1930, poetisa portuguesa)
“Saber envelhecer é a obra-prima da sabedoria e um dos capítulos mais difíceis na grande arte de viver” (Hermann Melville, 1819-1891, escritor norte-americano)
Nas nossas sociedades, valorizamos hoje, muito mais do que noutros tempos, aquilo que consideramos ser a qualidade de vida, acima mesmo da própria longevidade. Como digo muitas vezes aos meus doentes, se pudéssemos ter a vida ideal, seria uma que não tivesse doenças graves ou limitativas, rodeado pelo amor e pela amizade da família e dos amigos, com dinheiro suficiente para ter um conjunto razoável de confortos e para viajar, pleno de estimulantes desafios intelectuais e sensoriais, vindo a falecer de súbito, de forma não violenta, sem sofrimento, por volta do virar do século de existência. Mas quem o consegue? E pedir ou pensar nisso, valerá mesmo de algo?
Neste sentido, poderemos constatar que a qualidade de vida não é certamente sinónimo obrigatório de uma longa vida. Os aspetos funcionais e a capacidade de autossuficiência são fundamentais para que cada ser humano possa dizer que se sente efetivamente feliz. Não ter dor. Ter um sono diário reconfortante. Ter prazer quando se relaciona com os outros, na seio da família ou no trabalho, quando come, quando bebe, quando sente o odor de um perfume, de uma iguaria, ou do(a) amante, quando contempla o(a) companheiro(a), os filhos, os pais, os netos, os irmãos, os amigos, os colegas de trabalho, os vizinhos, uma paisagem, um poema ou uma tela, em férias ou na lufa-lufa do dia-a-dia, quando escuta o choro inicial do primeiro filho, o gemido do prazer sexual do(a) parceiro(a), ou a melodia preferida, quando sente o enérgico aperto de mão de um amigo de longa data ou a terna carícia de alguém a quem nos ligam laços afetivos significativos, tudo é fundamental para a realização de cada um de nós, embora cada qual seja livre de ter as suas naturais preferências no como, no quando e no com quem. Ou, antes, com mais ninguém! A consciencialização destas condicionantes, permite-nos perceber muito melhor a posição oposta, representada pelo que Louis Céline, médico e escritor francês, aludiu quando escreveu “a maior parte das pessoas morre apenas no último momento; outras começam a morrer e a ocupar-se da morte vinte anos, ou até mais. São os infelizes da terra”.
A este propósito, invocaria duas histórias que exemplificam plenamente o que é o prazer de viver, mesmo quando toda a lógica conduziria, na grande maioria dos casos, precisamente ao inverso. Assim, é-me completamente impossível ficar indiferente quando me recordo daquele doente com uma imunodeficiência adquirida muito grave e com um Sarcoma de Kaposi disseminado, com indicação formal para fazer quimioterapia citostática sistémica, que me disse, sem apelo nem agravo, que a recusava, mas que tomaria toda a restante terapêutica que eu lhe receitasse, porque estava plenamente convicto que iria melhorar o suficiente para, passados algumas semanas, voltar ao seu trabalho e, volvidos alguns meses, subir o nível de linfócitos CD4 de umas escassas dezenas para mais de mil, o que, de facto, veio a acontecer tal e qual. Depois de ganha a “aposta”, disse-me que ter sabido que tinha aquela doença, tinha sido o melhor que lhe havia acontecido, pois havia passado a encarar a vida de um modo bem diferente, saboreando cada dia como se de uma vitória se tratasse, viajando muito, divertindo-se nas horas livres com várias atividades, tais como a espeleologia, o tiro aos pratos e a dança, tendo imensos e desafiantes projetos profissionais em curso.
Sentimento idêntico pude verificar num outro doente que tinha feito da irreverência o seu modo de vida durante as primeiras três décadas da sua existência, até ser apanhado pela polícia do país vizinho numa rua da sua capital, com uma agulha espetada na veia jugular externa e a esvair-se paulatinamente em sangue, depois de uma overdose. Repatriado para a terra dos pais para aí se tratar, estava quase caquético quando passou a ser meu doente, altura em que, internado, foi tratado de uma tuberculose multiorgânica, tendo-se concluído que padecia de uma imunodeficiência adquirida em estádio muito avançado, já lá vão um bom par de anos, após o que anunciou ter resolvido mudar completamente de vida. Passou a exibir um notório orgulho no facto de ter retomado o seu trabalho, constituído família, acompanhado o crescimento dos filhos e de tê-los educado nos bons princípios que anteriormente recebera dos progenitores, e que veio, inclusive, a ajudar na velhice, como se isso fosse o pagãmente de uma dívida afetiva que interiorizou que tinha por obrigação ética saldar em vida de ambos. Hoje, com cerca de meio século de existência, com uma compleição física invejável, voltou à prática do seu desporto favorito, o ciclismo, mesmo apesar das volumosas varizes que exibe nos membros inferiores, consequentes, em parte, aos velhos hábitos de consumo desenfreado das mais variadas drogas. Cada vez que me vê na consulta, mantendo o mesmo inato espírito de irreverência, diz-me sempre com um sorriso rasgado de infantil malandrice: se os “putos” que deixo para trás ao fim de umas largas dezenas de quilómetros, sentado em cima do selim da minha bicicleta, soubessem que tinha esta doença, nunca acreditariam. Estas são as minhas grandes vitórias para os que nunca acreditaram que eu aqui chegasse como a saúde que efetivamente reconquistei, com a sua ajuda e com a minha indomável vontade de viver.
IV)- O Sofrimento
“A ofensa mais atroz que se pode fazer a um homem, é negar-lhe que sofre” (Cesare Pavese, 1908-1950, escritor italiano)
“A dor que se cala é de todas a mais funesta” (Jean Racine, 1639-1699, dramaturgo francês)
O sofrimento faz parte da vida dos Seres Humanos e a procura em obviá-lo é uma das missões inalienavelmente mais nobres do médico, tanto quanto falar a linguagem da verdade e saber transmitir, de forma adequada, o prognóstico inerente ao diagnóstico formulado. Por pior que este seja, há que encontrar o meio, o momento e o local mais adaptados à circunstância concreta e no respeito pela autonomia e personalidade do doente, sempre que possível, num clima recatado e com uma indispensável cumplicidade afetiva. Este é um dos pilares onde deve assentar a ética do relacionamento interpessoal, com especial acuidade na que se refere ao contexto do médico perante o seu doente e, mais ainda, no contexto das doenças com prognóstico vital ou funcional muito reservado. Olhos nos olhos. Mão na mão. Mente na mente.
Uma das histórias clínicas mais ilustrativas a este propósito, diz respeito à do ex-capelão do hospital que, já octogenário, tendo tido um acidente de automóvel, sofreu uma lesão dita de “chicote” sobre a coluna cervical, tendo ficado tetraparético. Teve um internamento muito prolongado até ao seu exitus, as últimas longas e penosas semanas do qual, num quarto da velha enfermaria do Serviço de Medicina Interna do meu hospital, ligado a um ventilador. Assisti, em diversas ocasiões, pela frincha da porta, aquando dos períodos de urgência interna que então regularmente realizava, por vezes de madrugada e alertado pelo corpo de enfermagem, ao mesmo tentar desligar o ventilador a que estava conectado. Escrevi, no meu livro: “que iníquo sofrimento poderia condicionar um homem de tão profundas convicções a atentar deliberadamente contra a sua própria vida? Ou seria aquela atitude, antes fruto de uma síndrome confusional que muitas vezes acompanha o estádio terminal das doenças prolongadas e mais comum ainda nas faixas etárias avançadas, ou, quiçá, talvez, a manifestação inconsciente de um mero instinto inato e muito primário, consubstanciado numa simples fuga ao desconforto sentido? Como lidar com este insondável paradoxo, além de o impedir de consumar tão brutal «intenção» e de, pegando-lhe na mão, tentar estabelecer alguma espécie de diálogo? Disseram-me, posteriormente, várias pessoas que o conheciam mais profundamente do que eu, que acreditavam piamente que seria incapaz de concretizar tal intento de forma consciente e assumida. Não sei. Penso que ninguém saberá ao certo. Atrevo-me mesmo a afirmar que ninguém teria esse direito. Por mim, mesmo que assim tivesse sido, nunca seria capaz de o acusar de incoerência ou de o considerar menos enquanto Ser Humano. Teriam as circunstâncias ultrapassado a «vontade genuína» do próprio Homem, pergunto?”
Noutra, protagonizada pela minha sogra, uma das pessoas mais genuinamente imbuídas de natural bondade que jamais conheci, vítima de uma doença oncológica em fase terminal e que tinha manifestado vontade de falecer na cama do quarto da sua própria casa, tal como veio a acontecer, e rodeada pela família mais significativa, depois de ter feito duas semanas antes, na companhia do marido, da minha própria e da Ana (a filha mais nova e minha esposa, também médica), a mais inusitada e inolvidável das viagens que se possam sequer imaginar. Perto do final de vida, implorou-me, inesperadamente, para eu a matar, erguendo-se de súbito do leito e agarrando-me com determinação, quando já estava há três dias sem dizer uma palavra, sem pedir para comer ou para beber sequer, apenas com uma pausada respiração superficial, após o que se voltou a deitar, sem ter forças para mais coisa nenhuma, e sem ter ouvido qualquer resposta, estava a minha filha Joana, muda, no canto do quarto, o que só alguns anos depois fiquei a saber. No livro, escrevi: “alimentar este tipo de doentes, ou até dar-lhes água quando não o pedem, e esse simples gesto é sentido pelos próprios com profundo desconforto, é algo que, abreviando a vida, dignifica a morte, por evitar causar desnecessário sofrimento. Os doentes entram posteriormente em insuficiência renal, evoluindo depois para coma, o que, na ausência de dores, poderá constituir uma opção legítima e lógica para lidar com situações terminais desta natureza. Embora se saiba que cada um, em cada circunstância, pode reagir, perante a mesma doença, de uma forma completamente diferente de outra pessoa qualquer, aquilo que presenciei, colocou-me em estado de verdadeiro choque emocional… «O que se passaria no íntimo da doente?» Teria sido uma alucinação, própria de um estado consumptivo extremo e com alterações metabólicas já quase irreversíveis secundárias à evolução da própria doença, à desnutrição e à desidratação acompanhantes? Ou seria, antes, a última exteriorização de um extremo desespero, ao ponto de poder colocar em causa todas as convicções de uma vida inteira, quiçá precipitado pela recordação de ela própria ter assistido, ainda criança e sem qualquer apoio afetivo de um familiar próximo, à morte da sua mãe deitada na cama do seu quarto, vítima de uma doença prolongada, de causa nunca devidamente esclarecida? Como saber? E teríamos nós o direito de o tentar descodificar? Muitas famílias tentam atavicamente afastar os jovens nestes momentos, mas a minha convicção e experiência ditam precisamente o oposto: aprender a lidar com a morte e o sofrimento alheio é algo profundamente formativo para a sua consciência, desde que o ambiente e o diálogo que se estabeleça sejam adequadamente enquadrados por um forte sentimento de partilha e de introspeção”. A minha sogra viria a morrer poucos dias depois, muito serena e sob sedação e analgesia com morfina, administradas através de um soro colocado num dos membros superiores, pois não pretendíamos dar aso a outro terrífico episódio semelhante. E a minha filha Joana guardou na sua memória, esse momento único, como um vestígio afetivo do real significado da vida e da morte que certamente jamais esquecerá.
Existem, pois, diversos contextos generalizadamente identificados como sendo a concretização prática do modelo associado às doenças consumptivas. O exemplo das do foro oncológico é, assim, a este respeito, o mais paradigmático. Se algo significa, para o vulgar cidadão, designadamente, para o doente, no íntimo, a palavra “cancro”, é, certamente, sofrimento, dor e morte antecipada. Só isto é suficiente para carregar em si, cultural e antropologicamente falando, uma carga emocional e simbólica, verdadeiramente únicas. Às vezes, as palavras, pouco mais adiantam e o que expressam, fica sempre aquém da tradução efetiva da realidade interiorizada pelas emoções que partilhamos com os doentes. Informá-lo adequadamente e, em simultâneo, saber transmitir-lhe esperança é uma das missões mais nobres do médico, mesmo em situações clínicas de reconhecido prognóstico reservado como este. Há, ainda, que considerar vários fatores fundamentais, designadamente: o grau de lucidez mental do doente, a profundidade do seu conhecimento relativo à natureza da doença de base de que padece, respetivo prognóstico, resposta ao tratamento empreendido, e, sobretudo, o seu conjunto de valores e de crenças, bem como a existência das denominadas diretivas antecipadas de vontade, acerca de alguns aspetos fundamentais da vida do próprio.
Outro exemplo, geralmente menos associado, mas verdadeiramente no limite deste imaginário, é o contexto do exercício da denominada medicina humanitária, no qual o relacionamento médico-doente, sobretudo quando estão em causa cenários de catástrofes naturais de grande magnitude, para além de ter que procurar respeitar (se possível…) tudo aquilo que é usual exigir-se nas situações clínicas ditas mais comuns, tem a particularidade de poder decorrer entre pessoas sujeitas a um esmagador “stress” emocional, em que a sensação de vulnerabilidade do Ser Humano é aterradora, a exiguidade de meios muitíssimo limitativa, o tempo disponível para cada ato médico, extremamente exíguo, a pressão das circunstâncias e dos circundantes, avassaladora, a comunicação verbal interpessoal, difícil, ou, mesmo, quase impossível, enfim, a sensação que prevalece, será, muitas vezes, a de que o fim da própria vida, e, quiçá, do próprio mundo, pode estar iminente. Podendo, certamente, tudo isto ser uma realidade, num dado momento, isso não implica que falte aquela centelha de humanismo e de bondade, capazes de poder transformar esse, num momento inesquecível para ambos os seus protagonistas. É que há alturas em que aquilo que, noutras circunstâncias, poderia saber a pouco e estar desprovido de qualquer significado digno de registo, pode tornar-se em algo tão precioso, que não há palavras que o possam classificar. Apenas o coração é capaz de entender e a memória dos participantes fazer o correto registo. Para sempre. Tal e qual como dizia o grande aventureiro, escritor e ilustrador francês Antoine Saint-Exupery “só com o coração se pode ver bem o que é essencial e invisível aos olhos”.
V)- A Morte
“Não é verdade que a morte é o pior de todos os males; é um alívio para os mortais que estão cansados de sofrer” (Pietro Metastasio, 1698-1782, escritor italiano)
“A morte não é um tormento. É o fim de um tormento” (Cayo Salustio, 86ac-34ac, escritor italiano)
David Grossman, um grande escritor judeu e israelita, que passou pela marcante experiência de perder um filho no teatro de guerra há já uns anos, numa entrevista a um jornalista, ao refletir um pouco sobre essa problemática, afirmou muito sentidamente: «Quando se perde alguém, não se perde só a pessoa e o futuro que ela poderia ter, perde-se também o seu passado e, com isso, o nosso próprio passado por causa do medo de lhe tocar». Algo com um sentido muito idêntico e complementar foi escrito pela pena de Miguel Unamuno, um grande pensador espanhol, ao deixar dito que “os homens vivem juntos, porém cada um morre sozinho e a morte é a suprema solidão. Quando morre alguém que nos sonha, morre uma parte de nós”. Eu acrescentaria que, por analogia, quando um médico perde um doente que conhece há muito e que com ele estabeleceu uma relação emocionalmente forte, o sentimento dessa perda é muito semelhante ao descrito por estes dois escritores, pelo que jamais devemos ter temor de abordar esta temática com eles da forma mais adequada possível e na altura certa, como já o fiz inúmeras vezes, mas sem ninguém me ter tal ensinado.
Outra história que acho pertinente aqui evocar e referida naquele mesmo livro, diz respeito ao caso de um colega meu com uma vida bafejada por uma sucessão infernal de perdas. A primeira, a da esposa e mãe dos seus quatro filhos, com uma neoplasia do SNC e, depois, um dos filhos, vítima de um brutal acidente de automóvel. Ainda não completamente refeito do terrível efeito destes enormes infortúnios, teve de se confrontar com nova doença oncológica que acometeu, não só a sua nova companheira e colega de profissão, tal como o outro filho também. Em relação a este último, o meu colega ainda chegou a pensar, perante o comportamento assaz caprichoso que passara a exibir, que este era antes fruto de uma inaceitável irresponsabilidade, até se ter concluído que padecia, afinal, de uma doença idêntica à que vitimara a sua mãe, quando este era ainda uma criança de tenra idade. Quis o acaso que viesse a entrar em estado agónico e comatoso quando eu estava no SU, vindo a falecer na minha presença e na do próprio pai, a quem eu mal tinha tido tempo para acabar de explicar o que se estava a passar. Em “Ode ou Requiem”, escrevi, a propósito daquilo que considero dever ser o comportamento do médico nestas dramáticas circunstâncias.
«Como se faz isto?», pergunto-me sistematicamente em surdina quando passo por momentos de idêntica índole… Acabo sempre por concluir que nunca se deve tentar antecipar o natural desenvolvimento dos acontecimentos, mostrar a maior tranquilidade e disponibilidade possíveis, fazer os outros sentirem a nossa presença de forma solidária e profissional, não racionalizar nem dramatizar em demasia o nosso discurso, sabendo utilizar de forma adequada e espontânea a linguagem gestual. Dar as mãos, saber escutar atentamente os desabafos dos familiares, olharmo-nos de olhos nos olhos, não termos complexos de nos emocionarmos também e proporcionarmos, sobretudo, espaço, para que os outros o possam fazer da forma mais natural possível. São tudo formas de tentar transmitir as necessárias mensagens de serenidade e de cumplicidade que permitam precisamente atenuar o sofrimento alheio”. Quando, após o momento em que o seu filho faleceu, eu e meu colega Nogueira Seco trocámos um forte e terno abraço, mal imaginava que, pouco tempo depois de me ter autorizado a publicar a história do seu filho, após a ter lido em contido silêncio com o coração certamente muito apertado, este haveria de vir a ser também meu doente, em circunstâncias igualmente muito dramáticas, na altura em que a sua esposa se confrontava com a recidiva da sua doença oncológica. Mesmo assim, ainda pôde ir à minha casa, pouco antes de ele próprio adoecer, com os demais elementos da nossa antiga equipa do SU, que sempre chefiou com invulgar, humana e incontestada autoridade, acompanhados pelos respetivos consortes, saborear um jantar de caça que eu próprio confecionei com enorme desvelo, que muito apreciou e do qual se recordava amiúde. Fui várias vezes visitá-lo e consultá-lo, primeiro, na sua casa, e, depois, na fase final, na residência onde passou as últimas semanas de vida. A minha mãe, sem que nunca lho tivesse dito, ocupa hoje, aquele que foi o seu quarto, na residência dos professores em Setúbal. Coincidências insondáveis da vida das pessoas…
Outra história, envolveu um casal de grandes amigos meus, com quem sempre convivi imenso, e que, após a doença, primeiro, dele, que justificou um forçado afastamento do trabalho por longos meses, e, dela, depois, vítima de um avassalador estado de “burnout”, em que, após largos meses de enorme incapacidade, começava a sair de uma profunda depressão psicológica e de uma quase caquexia, confinada que tinha estado à cama praticamente o tempo todo, me coube a ingrata missão, de que não seria imaginável furtar-me, de ter de fazer entender ao Magalhães a verdadeira natureza da grave doença de que o pai da Margarida padecia, e que, após uma observação clínica efetuada nesse mesmo dia, concluí que o melhor seria este ir para casa falecer, rodeado da família mais chegada, sem ter a certeza, porém, que isso não fosse descompensar completamente o quadro clínico instável da minha amiga. No dia seguinte, aquando do velório, a Margarida pode abraçar-me comovidamente, agradecendo com tocante sinceridade o facto de se ter podido despedir do pai como tinha concluído que seria afinal a forma mais humana de o fazer. A que acrescentou, alguns anos mais tarde, que só através desta vivência tinha podido ganhar consciência disso e passar a não entender muito bem porque é que as outras pessoas pensam geralmente o contrário.
No meu livro escrevi: “Embora tal atitude fosse passível de ser paradoxalmente entendido pelos leigos como a materialização de um inaceitável abandono, na realidade, era precisamente o inverso. Dar as mãos e ouvir em silêncio – e na companhia da família e dos amigos mais chegados do moribundo –, a respiração do nosso ente querido era, de facto, a forma mais humanizada de alguma pessoa se despedir deste mundo. A questão da medicalização desajustada da morte é um dos assuntos mais importantes da prática médica e, infelizmente, muito pouco ensinado nas faculdades e nos internatos de especialidade, devendo, pois, passar a fazer parte do currículo obrigatório de todas elas. Existem ainda muitos e generalizados preconceitos acerca deste tema, sendo assim de importância decisiva a sua discussão, quer para qualquer sistema de saúde, quer para todos os cidadãos e respetivas famílias. O atávico receio do confronto com alguém que está prestes a morrer e a suposição automática de que esta situação necessita obrigatoriamente de um internamento hospitalar, só acarretam uma maior intranquilidade e um mais acentuado sofrimento ao próprio doente, na grande maioria das circunstâncias, não sendo isso sequer desejado pelo próprio. Pretende-se, assim, desadequadamente, evitar um escusado sofrimento aos familiares, quando, na realidade, o que se consegue, é precisamente o contrário”.
VI)- Considerações acerca do âmago da presente discórdia
“Quando eu pensar que aprendi a viver, terei aprendido a morrer” (Leonardo da Vinci, 1452-1519, génio maior do renascimento italiano)
“Quem não sabe o que é a vida, como poderá saber o que é a morte?” (Confúcio, 551ac-479ac, pensador chinês)
“Morremos quando não há mais ninguém por quem tenhamos vontade de viver” (Henry Montherlant, 1896-1972, escritor francês)
Num artigo que publiquei há cerca de três anos na Revista da OM, intitulado “As verdades que se impõe serem ditas com prudência, coragem e esperança” disse, e continuo a pensar da mesma forma acerca desta temática: “Porquê legislar-se sobre esta matéria antes de se fazer urgentemente aquilo que se impõe e que uniria certamente os defensores de ambas as correntes de opinião, ou seja, um reforço significativo das três redes existentes de cuidados (paliativos, continuados e domiciliários), e da formação de técnicos especializados em número adequado, enquanto se procede a uma discussão séria, não só no seio dos médicos (e dos restantes profissionais de saúde) e respetivas organizações representativas, mas também pelas associações de doentes e, logicamente, por todos os cidadãos que queiram dar esse contributo à sociedade. É que, estou firmemente convicto, é tão demagógico admitir que elas resolverão definitivamente todos os problemas, quanto o é também, afirmar que não irão existir efetivamente alguns casos muito concretos, em que a questão da antecipação da morte se poderá ter de colocar com toda a frontalidade. Fazer as coisas ao contrário e precipitadamente será, certamente, desvalorizar a extrema importância da sua existência, no sentido de minorar ao máximo o sofrimento humano, permitindo contudo que, futuramente, em casos verdadeiramente excecionais, não se deixe de considerar a morte uma efetiva alternativa a uma vida de permanente, irreversível e intolerável sofrimento. Até porque, a Morte, ela mesma, como momento derradeiro da Vida, e à semelhança desta, também carece de ter a mesma dignidade.
Aos que defendem convictamente cada uma das posições, que respeito profundamente, aconselho a leitura do meu livro “Ode ou Requiem” e que, não tendo sido publicado com este propósito, não deixa de interpelar o tema da Vida e da Morte, pois conta mais de meia centena de histórias clínicas verídicas de doentes que tratei (família, amigos, colegas, doentes de longa data, anónimos cidadãos, etc.), muitas delas que acabaram no seu “exitus”, mas, onde, o sofrimento e a alegria se mesclam, através de uma visão muito pessoal daquilo que considero dever ser a relação médico-doente e no que é que consiste o âmago do ato médico. Estarão os legisladores à altura de saber impedir eficazmente os indesejáveis abusos e a hecatombe de valores que representaria a sua desajustada generalização e iníqua banalização, que só nos poderia conduzir a um novo Holocausto, pergunto?!…
É que, convém não confundir, o “direito ao suicídio”, com a colaboração ativa dos profissionais de saúde enquanto cúmplices ou autores de atos eticamente reprováveis. Se a Vida, na verdade, nunca foi um verdadeiro valor absoluto em si mesmo, mas “apenas” o maior de todos eles, porque, entre outras exceções, se admite o homicídio em legítima defesa, se reconhece o direito a priorizar a vida da mulher grávida em detrimento da do seu feto, quando se está perante uma gravidez na qual existe uma séria ameaça à vida da própria mãe, se dá acesso a alguém poder decidir por uma interrupção voluntária da gravidez quando se detetam precocemente malformações graves ou a presença de uma doença de muito mau prognóstico no feto (as vezes induzida iatrogenicamente!), se aceita sem reservas a não viabilização por meios comummente considerados extraordinários, de recém-nascidos portadores de gravíssimas malformações congénitas incompatíveis com uma vida autónoma e com um relacionamento afetivo mínimo com os seus progenitores (como no caso dos anencefálicos), não se condena quem mata por ordem judicial ou no teatro de guerra (e às vezes se chega mesmo a matar por amor, como na adaptação cinematográfica da história do grande herói da antiguidade, o escravo Spartacus, protagonizado pelo grande ator norte-americano, Kirk Douglas, recentemente falecido…), também não se deve deixar de considerar que o sofrimento sem remédio algum disponível não é nada edificante e que o verdadeiro compromisso do médico para como o seu doente é, mais do que tudo o resto, o respeito absoluto pela sua vontade devidamente expressa com total liberdade e plena consciência, a par da defesa consequente e sem cedências da sua dignidade, quer em vida, quer na morte, embora sem nunca contrariar a essência do código de ética da profissão. Mas, jamais, não deixando de dar tempo para o eventual refazer da sua opinião, nunca confundindo um episódio de desespero ou de depressão passageiros e reversíveis (muitas vezes induzidos por fatores sociais), estados confusionais ou perdas cognitivas limitativas do bom julgamento, com a efetiva realidade assumida com toda a determinação, ponderação e perenidade, sem a influencia das pressões de terceiros (muitas vezes disfarçadas e que ocultam outros interesses próprios e nada edificantes), respeitando sempre o que tiver sido exarado na “Diretiva Antecipada de Vontade” que o próprio tenha registado, tal como está presentemente previsto na legislação em vigor, e jamais promovendo a repugnante e unanimemente condenável distanásia.
É este o verdadeiro sentido que pretenderam transmitir Lord Byron e Thomas Mann quando declararam, respetivamente que, «O Homem é um pêndulo entre o sorriso e o pranto» e «O interesse pela doença e pela morte é apenas uma expressão do interesse pela vida». A verdadeira missão do médico poderá, assim, resumir-se àquilo que afirma o poeta inglês Samuel Coleridge: «O melhor médico é aquele que mais esperança infunde». Mas não a falsa e sem real fundamento, deverei eu acrescentar…”
VII)- Concluindo: A minha opinião
“Quando tiranos a vida aos homens, não sabemos, nem o que lhes tiramos, nem o que lhes damos” (Lord Byron, 1788-1824)
“O pior não é morrer, mas ter de desejar a morte e não conseguir obtê-la. A morte é o último médico das doenças” (Sófocles, 497ac-406ac, Dramaturgo Grego)
“Sofrer ainda é viver” (Romain Rolland, 1866-1944, escritor francês)
No discurso que proferi na recente apresentação do livro da OM “A Relação Médico-Doente” disse: “é que a citação de índole hipocrática, tantas vezes repetida, apenas porque parece mal não o fazer, onde se clama que- curar umas vezes, aliviar outras, mas confortar sempre- ser a que melhor define a missão do médico, além de ser um imperativo intemporal de consciência profissional também, comporta ainda algo de tão transcendente importância, que só é passível de se poder concretizar, passo-a-passo, num percurso de solidária parceria sem reservas, em que as idiossincrasias, quer do médico, quer do doente, se potenciem a favor de uma comunhão espiritual, imbuída de solidariedade, de comiseração, de confiança e de empatia, que permita, nas circunstâncias em que tal se aplicar, a aceitação, com o mínimo sofrimento possível, da deficiência, quando não, da própria morte, sem nunca retirar a derradeira centelha de esperança. Muitas vezes, olhar nos olhos do outro com ternura, dar as mãos com suavidade e ouvir a respiração do doente em solidário silêncio, é o mais humano dos possíveis tratamentos. Impõe-se reconhecer, pois, que o imprescindível diálogo que devemos saber cultivar sempre, não se esgota no simples uso da palavra, e o efeito terapêutico não se restringe à adequada utilização dos fármacos ou do instrumental cirúrgico”.
A que acrescentei, que “a este profissional não deverá jamais caber, na âmbito da sua missão corretamente entendida, contribuir, direta ou indiretamente, implícita ou explicitamente, para que qualquer membro da nossa espécie venha a apoderar-se daquilo que deve continuar a permanecer como propriedade exclusiva e distintiva das divindades, ou seja, o acesso à eternidade, como penso estar simbolicamente subjacente ao “quase tocar os dedos entre Deus e o Homem” na intemporal pintura do genial Michelangelo, denominada de “A Criação de Adão”, no teto da Capela Sistina do Vaticano. Tão só, porque a Morte, sendo certamente o último capítulo da Vida, dela faz parte indissolúvel e isso é condição indispensável de dignidade”, e, ainda, “nem tudo o que é técnica e cientificamente possível de ser implementado é eticamente lícito, pois a eventual concretização daquele hipotético cenário, seria como que um novo Holocausto, em que as vítimas não seriam, agora, como o foram outrora, apenas os crentes de uma determinada fé religiosa ou etnia, mas antes toda a Humanidade”.
Este pode ser, pois, o sentido daquilo que podemos depreender de três citações que nos devem fazer pensar muito, como disse no início deste texto, acerca do futuro da Medicina, todas alusivas à procura subconsciente do Homem acerca da sua própria imortalidade; “Nós morremos. Esse pode ser o sentido da vida”, da escritora norte-americana, Toni Morrison; “A vida sem uma meta é completamente vazia”, do escritor do antigo império romano, Séneca; e “A morte é terrível, porém mais terrível ainda seria ter a consciência de viver eternamente e de nunca poder morrer”, do médico e escritor russo, Anton Tchekhov.
Quase a terminar este conjunto de reflexões e de histórias clínicas, algumas retiradas de escritos que anteriormente publiquei, deverei esclarecer que sou adepto da opinião que há que distinguir entre eutanásia e suicídio assistido. A primeira, subentende uma colaboração ativa de alguém, e isso, como regra, é algo tido como contraditório aos preceitos da ética profissional e da verdadeira missão do médico. Já no que se refere ao segundo, entendo que se pode (e deve!) encontrar maneira, nas situações limite já referidas, de dar acesso, a quem o pretenda, desde que tal não implique a colaboração ativa deste profissional, pelas mesmas razões invocadas. Já quanto à questão do acesso à imortalidade, penso convictamente que a investigação científica que a ela poderá conduzir, deve ser liminarmente proibida, pois tal representaria, do ponto de vista da ética civilizacional, algo de profundamente contraditório, só podendo conduzir à aniquilação do Homem, enquanto o Ser Humano que hoje conhecemos. Como já disse algures, o que temos é de ensinar a interiorizar a ideia de “ir gostando da idade que vamos tendo”.
Contudo, todas as regras comportam exceções e é completamente impossível de antever todos os futuros cenários. Assim, haja quem diga nunca ou sempre, com a certeza absoluta de que irá cumprir inapelavelmente essa solene declaração, independentemente de qualquer futuro contexto. A nossa vida e as circunstâncias fazem-nos, ainda que raramente, como aludi nalgumas das histórias clínicas que aqui trouxe para reflexão, poder ter de fazer o contrário do que havíamos pensado com genuína convicção, não sendo isso passível de uma acusação liminarmente fundada de incoerência por outrem. Veja-se o caso de um médico uruguaio, Roberto Canessa, autor do livro “Como eu sobrevivi”, baseado num caso verídico por si protagonizado, em que os passageiros que não sucumbiram num acidente de avião nos Andes, ocorrido nos anos setenta do século passado, tiveram, para sobreviver, de praticar canibalismo, tal como está retratado de forma pungente no filme “Alive” do realizador norte-americano Frank Marshall.
Fazendo um sério e honesto exercício de reflexão introspetiva, será que eu, enquanto pessoa e médico, nunca seria mesmo capaz, independentemente de tudo e de todos de, em situações que não consigo antever, mas apenas de hipotética e remotamente imaginar, recusar o apelo desesperado e consciente de alguém que, completamente perdido no labirinto infernal de um atroz e irreversível sofrimento sem remédio atenuante disponível, a quem me ligassem laços afetivos significativos e com um conhecimento profundo da pessoa em causa que me permitisse avaliar do carater genuíno dessa tocante interpelação, recusar deliberadamente antecipar-lhe uma morte que me convencesse que seria mais do que certa a prazo? Só posso responder que… talvez…!!!??? Mas, será tal, passível de ser colocado adequadamente numa lei? Francamente, não sei… E será esta uma matéria para referendo? Tampouco…
Para concluir, como afirmei nesse mesmo discurso, na base de toda esta problemática está a necessidade de se considerar que o mais importante de tudo é termos uma relação médico-doente assente nos princípios definidos no Livro com esse mesmo nome, de que tive a honra de ter sido o editor e autor também. Nele escrevi, ainda, o seguinte: “é bom afirmarmos com toda a convicção que aquela relação possui, como se demonstra neste livro, e escrevi no texto do editor, características tão identitárias, que só pode ser concebida como um relacionamento entre iguais, do Homem para o Homem, ou seja, enquanto este for o Ser que hoje conhecemos, com a capacidade de se emocionar, de se condoer, de se indignar, de transportar um notável conjunto de valores civilizacionais acumulados ao longo de inúmeras gerações, de poder fazer opções e julgamentos de natureza ética com base nos mesmos, e de possuir corpo e espírito) deve ser sempre tratado por alguém com idênticos atributos. Quando vier, eventualmente, um destes dias, num futuro mais ou menos longínquo, a ser um ente biónico, composto por um conjunto de circuitos eletrónicos e de peças de material inerte descartável, fará então todo o sentido que passe a ser tratado por um mero “robot” e não por alguém originado e criado com amor por seres semelhantes, logo, perecível, falível, provido de inteligência emocional, e de uma tosca amálgama de pelos, pele, músculos, osso, nervos, sangue e alma feito, porque esse é o magma biológico polvilhado de sentimentos, onde assenta a bela e imperfeita estrutura da condição Humana”. Condição que é a dos que pedem para que lhes abreviemos a vida e a dos que jamais pretendem que alguém o venha a fazer. E, que, deve ser também, a dos verdeiros médicos de corpo inteiro, independentemente da sua postura perante esta problemática, desde que sejam profundamente crentes na bondade das suas convicções e atitudes, e respeitando sempre a autonomia dos doentes.
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