Autor: José Poças (Médico Internista e Infeciologista; autor do Livro “Ode ou Requiem”; co-autor e editor do Livro “A Relação Médico-Doente” da OM, Provedor da Pessoa Doente da LAHSB; Autor do Site josepocas.com que tem como lema Medicina: Cultura, Ciências e Humanização)
I)- Introdução
A prática da Medicina está numa verdadeira encruzilhada, como fica patente da leitura do livro que o médico e jornalista inglês, James Le Fanu, publicou, denominado “A ascensão e a queda da medicina moderna”. Sem colocar em causa as virtualidades dos enormes avanços tecnológicos das últimas décadas para a Humanidade, deve realçar-se, como o fez de forma sublime o meu colega português e ex-bastonário da OM, Carlos Ribeiro, no seu livro “Ser médico”, que o exercício desta inolvidável profissão não vive sem haver espaço a esse diálogo fundacional e imprescindível entre a pessoa do Médico e a pessoa do Doente. Diálogo de palavras, de olhares, de expressões faciais, de gestos e com cumplicidade afetiva. No princípio e no fim do ato médico. A tecnologia, só tem cabimento, nos entretantos. Há, assim, que saber salvaguardar a sua verdadeira essência: a humanização no trato, a confiança nas decisões e a empatia mútuas. As reflexões que pretendo deixar para a consideração dos leitores, têm como ponto de partida um caso clínico verídico, dado que considero convictamente que a realidade dos contextos dá uma outra dimensão aos fundamentos: a do Ser Humano na sua plenitude.
Introduction
The practice of Medicine is at a real crossroads, as is clearly shown in the book published by the English physician and journalists, James Le Fanu, called “The rise and fall of modern medicine”. Without doubt the virtualities of the enormous technological advances of the last decades for Humanity, it should be highlighted, as did my Portuguese colleague and ex-president of the Portuguese Medical Association, Carlos Ribeiro, in a sublime way in his book called “Being a doctor”, that the exercise of this very unique profession cannot live without leaving space for this fundamental and essential dialogue between the person of the Doctor and the person of the Patient. Dialogue of words, of looks, of facial expressions, of gestures and affective complicity. At the beginning and at the end of the medical act. Technology only fits in the midle of this process. Thus, it is necessary to know how to safeguard its true essence: humanization in dealing with other person, trust in mutual decisions and empathy. The messages that I intend to leave for the readers to consider, starts with a real clinical case, since I strongly believe that the reality of the contexts gives another dimension to the its principles: that one of the Human Being in its whole dimention.
Palavras Chave / Key words: Missão do Médico: Ato Médico; Relação Médico-Doente; Ética / Doctor´s Mission; Medical Act; Doctor-Patient relashionship; Ethics
II)- A história clínica
A personagem principal desta inusitada história é minha doente há cerca de um quarto de século, tempo suficiente para que tenha sido possível estabelecer com ela uma relação de conhecimento mútuo, capaz de propiciar um entendimento que, tendo começado por ser de índole médica, no sentido estrito do termo, foi evoluindo ao longo do tempo para um patamar que abarca também outras vertentes do relacionamento interpessoal. O que nos permitiu encararmo-nos como se fossemos mais do que simplesmente, médico, um, e, doente, o outro, atendendo ao que é usual considerar como sendo o padrão de comportamento dito “normal”.
Esta doente, hoje na sexta década de vida, padece de uma infeção crónica pelo vírus da imunodeficiência adquirida do subtipo 1, suponho que transmitida por um emigrante oriundo de um país francófono do Golfo da Guiné que também foi meu doente, embora já falecido há muitos anos, na sequência da inexorável evolução daquela mesma enfermidade, numa altura em que a terapêutica de associação tripla de alta eficácia começava a despontar. Desconheço, ao certo, quando, onde e como o mesmo se terá infetado, embora presuma que a terá contraído no seu país de origem, alguns anos antes de ter vindo trabalhar para Portugal.
Foram minhas doentes, ao longo desse período, duas outras parceiras de “amores proibidos”. Uma, de nacionalidade espanhola, era funcionária da empresa que fornecia serviços de limpeza hospitalar e irmã de um médico que trabalhava numa clínica de uma cidade de província do País vizinho, que me confidenciou telefonicamente, muitas vezes, a sua enorme angústia pela progressiva degradação do estado de saúde da mesma. Não sem razão, pois a condição física dela foi-se debilitando rapidamente, vindo a falecer vítima das complicações oportunistas consequentes a uma infeção já com muitas mutações acumuladas, próprias de um grau de imunodeficiência severo e que, por isso, tinha deixado de responder às limitadas combinações de antirretrovíricos então disponíveis.
Possuía dois filhos adolescentes de sexos diferentes, cada um fruto de um relacionamento que manteve com dois anteriores companheiros, dos quais se veio a separar uns anos antes. Durante o período em que foi minha doente, no desespero de se ver com uma saúde cada vez mais débil e quase sem esperança, chegou mesmo a deixar de fazer os imprescindíveis exames auxiliares de diagnóstico requeridos periodicamente, bem como de comparecer à consulta, pois optara por ir “tratar-se” com “mezinhas” que eram fornecidas por “feiticeiros” africanos com “consultório” nas redondezas, que passara entretanto a “consultar” e que lhe prometiam a almejada “cura”, mesmo sem necessidade de ter de ingerir os tão “tóxicos” comprimidos que eu mesmo lhe prescrevia e que “tanto mal” lhe fariam, segundo a “infalível” opinião daqueles “sapientes especialistas”.
A outra companheira do protagonista masculino desta história, era uma simpática mulata brasileira de avultada corpulência, mais velha do que o próprio, que emigrara para Portugal havia pouco tempo antes da situação clínica deste se ter começado a deteriorar de forma irreversível, pois a verdade é que a sua adesão à medicação antirretroviral nunca tinha sido a necessária para poder manter a eficácia que lhe teria permitido sobreviver até que novas terapias eficazes viessem a ser introduzidas na prática clínica, como aconteceu a alguns doentes que ainda hoje acompanho ao fim de mais de três décadas.
Também esta acabou por ficar infetada, assumindo com grande responsabilidade e carinho as prioritárias tarefas de cuidar das duas filhas do seu mais recente companheiro, tal como a outra já havia feito, numa altura em que ambos eram menores de idade. A mãe biológica destas crianças, que nunca conheci pessoalmente, mas que apurei ser originária de um outro país de língua oficial Portuguesa, faleceu certamente vítima da mesma afeção, antes mesmo de ser efetivamente assistida no Serviço que dirijo, pois teve várias consultas marcadas a que nunca compareceu, tal como muitos outros doentes que infelizmente recusam encarar de frente a sua condição.
Fui muitas vezes por si abordado, com um vincado sentimento de angústia escarrapachado no rosto, embora bastante mais preocupada com o futuro das crianças, do que com a sua própria saúde, dado que o pai daquelas piorava diariamente, mesmo aos olhos de um leigo na arte médica, como ela. Algum tempo depois da morte daquele que lhe havia transmitido o vírus causador da doença mais mediatizada de toda a história da Humanidade no século XX, deixei de a ver, pois ficou assoberbadíssima ao ter de passar a dar educação e, mesmo, condições de sobrevivência, à prole herdada e perante quem assumira tal responsabilidade, já que os seus filhos biológicos e netos tinham ficado no país de onde era originária. Soube, recentemente, que tinha passado, entretanto, a ser assistida por outra colega do meu Serviço e que se tem mantido sempre com relativa boa saúde, sob medicação específica, visitando, volta e meia, a sua família do outro lado do Atlântico e mantendo uma surpreendente boa disposição.
Retornando agora à protagonista feminina cuja história é, para mim, verdadeiramente impossível de esquecer, recordo-me que, escassos meses depois de esta me ser referenciada por um colega dos cuidados de saúde primários, devido ao facto deste ter-lhe solicitado um teste serológico cujo resultado viera positivo para o VIH, deparei-me, algo surpreendido, com a sua súbita entrada na sala de reanimação, estava eu a chefiar a equipa de urgência, numa época em que também era diretor desse mesmo Serviço. Esta já havia comparecido previamente a algumas consultas médicas, nas quais tinha sido adequadamente informada da confirmação de que contraíra essa mesma infeção, elucidada acerca da natureza da doença, e, ainda, quanto às formas de não contagiar outras pessoas e de se proteger de outras infeções que lhe pudessem ser transmitidas, quer por mim próprio, quer pelas enfermeiras e, também, pela assistente social do setor de ambulatório do Serviço, como sempre é efetuado com cada novo doente admitido.
O cenário era verdadeiramente aterrador. Tinha decidido suicidar-se através de uma injeção autoinfligida e que pretendia que lhe trespassasse o seu próprio coração. Para o efeito, havia enchido com petróleo uma enorme seringa acoplada a uma agulha de tamanho proporcional, mas como não tivesse conseguido atravessar a grelha costal, acabou por vir a injetar uma grande parte daquele líquido no espaço retromamário do lado esquerdo, sangrando ainda um pouco pelo orifício onde havia infligido a pretensa estocada fatal, quando a observei à entrada. Estava febril, com a mama imensamente túrgida e com francos sinais inflamatórios, gritando convulsivamente de desespero e com um esgar de intolerável sofrimento escarrapachado no rosto. Certificando-me, de seguida, que estava livre de perigo imediato, pois apresentava parâmetros vitais estáveis e dentro da normalidade, transferia-a dali para a sala de observações no intuito de, num ambiente um pouco menos turbulento, poder com ela conversar. Ultrapassada uma primeira fase de ensurdecedor mutismo, entre os constantes soluços e um interminável choro, lá consegui perceber o que se passara. Os trejeitos da sua fácies denunciavam uma amálgama de emoções como nunca tivera a oportunidade de ver em ninguém. Eram patentes, quer uma excruciante dor física, quer uma inconsolável chaga na alma, a par de uma imensa revolta contra tudo e contra todos.
Não aceitava de modo nenhum a infeção que lhe tinha sido transmitida, tal como não achava ser merecedora de qualquer tipo de recriminação pelo facto de se ter apenas entregue, sem reservas, à mais louca e pura das paixões, no intuito de colmatar um brutal e longo vazio afetivo. Estava também imensamente frustrada pelo facto do seu amante partilhar o seu amor com outras rivais. Tudo isso fez com que pretendesse, num súbito assomo de ambivalente e dúbio arrependimento, voltar para a casa onde vivera com o marido e os seus dois filhos, mas ficou a saber, de imediato, que já ali não era de todo bem-vinda, pois estes fizeram questão de a informar que jamais voltaria a haver lugar para si no lar que ajudara a construir ao longo de anos. O que, foi sentido, nesse infeliz momento, como que uma verdadeira e injusta sentença antecipada de morte. Uma das enfermeiras que comigo hoje trabalha no Serviço, mas que na altura se encontrava a desempenhar funções na urgência, ainda tentou amenizar-lhe o soez infortúnio através da audição de música, o que lhe serviu de motivo para uma bem-sucedida tese de dissertação de mestrado.
Após um período de internamente que durou várias semanas, com passagem pelos serviços de cuidados intensivos, de cirurgia plástica e de psiquiatria, dado que a situação clínica tinha evoluído com uma tenebrosa ulceração da mama afetada, complicada de um processo infecioso que custou imenso a debelar, primeiro, e, depois, a cicatrizar, a par de uma profunda depressão, lá teve alta para ir viver sozinha numa modesta casa que herdara de seu falecido pai. Retomou hábitos antigos de leitura com que tentava acalmar uma enorme revolta interior, dado sentir-se definitivamente rejeitada pelo amante e inapelavelmente culpabilizada pelo marido e pelos filhos. Apesar de ter retomado as consultas com regularidade e de ter passado a ter um apoio mais constante por parte da psicóloga e da psiquiatra que integravam a equipa multidisciplinar do setor de ambulatório do Serviço, fui-me convencendo que esta entrara, do ponto de vista psicológico, num túnel escuro sem luz visível à saída, do qual não sabia se teria hipótese de alguma vez dali se evadir em paz consigo mesma e com o mundo que a rodeava.
Volvidos alguns meses, apesar de medicada adequadamente com psicofármacos, decidiu tentar novamente o suicídio, desta vez atirando-se de um viaduto que se situa no meio da cidade, na esperança que fosse cair debaixo de um camião que avistara vir na sua direção e que entrara numa reta da via rápida que se situava uns quantos metros abaixo da vedação para onde se havia empoleirado. Atirou-se a pique, mas, quis o “destino” que, em vez de cair à frente desse veículo, como supostamente pretendia, se tivesse estatelado sobre a lona que cobria a área habitualmente utilizada para o transporte de mercadorias. Grande sorte, terá eventualmente pensado, por um fugaz instante…??? Contudo, por baixo daquela, havia um varão colocado transversalmente que lhe servia de suporte e que ficava oculto por debaixo da mesma. Afinal, tinha tido, mas é, um grande azar, terá instintivamente concluído …!!! É que, em vez da queda ter sido suavemente amortecida pela referida lona, a sua coluna lombar acabou por se escaqueirar toda no embate contra aquela estrutura metálica, pelo que foi de imediato, num grande aparato e enorme sofrimento, evacuada de novo para a mesma sala de reanimação onde já tinha estado antes.
Soube do sucedido, quase de imediato, e senti-me impelido a aí deslocar-me assim que pudesse. Quase não havia diálogo possível. Apenas trocar um curto olhar interrogativo de cumplicidade, pegar-lhe suavemente na mão e pedir ao enfermeiro, ali presente, que lhe administrasse uma dose generosa de morfina, antes de providenciar a inventariação dos estragos corporais que tal incontido e tresloucado impulso produzira. Os achados imagiológicos e clínicos, colhidos já com a doente devidamente sedada e analgesiada não podiam revelar pior prognóstico: fratura de várias vertebras da coluna lombar sem solução cirúrgica viável e secção completa da espinal medula. A sentença de que iria ficar paraplégica para todo o sempre não deixava qualquer ponta de esperança de que tal não se viesse a concretizar…!!!
Desta vez, seguiram-se inúmeros meses de internamento. Após algum tempo no Serviço de Ortopedia, perante a infernal sucessão de múltiplas complicações médicas, designadamente de índole infeciosa, e de uma escara sagrada que emergira ameaçadoramente, decidi aceitar a sua transferência para o meu Serviço, pois havia também que facilitar a operacionalização de uma pesada logística que se revelava ser necessária: tratar eficazmente as infeções intercorrentes, tentar conseguir a cicatrização da úlcera sagrada, ensinar a manejar uma algaliação crónica, promover um apoio mais eficaz por parte da psicóloga, da psiquiatra e da assistente social e, finalmente, preparar a alta para casa. Houve que providenciar, também, alterações arquitetónicas na sua residência com o apoio da autarquia e assegurar um apoio domiciliário eficaz, que iria ficar a cargo da Cáritas Diocesana, que o disponibiliza, desde há muitos anos, aos nossos doentes mais problemáticos e carenciados.
A sua revolta nunca fora tão grande. Agora, para além de ter perdido tudo o que lhe era significativo, ou seja, o amante, o lar e a família biológica, havia comprometido irreversivelmente a sua autonomia e estava definitivamente confinada, ou, à cama, ou, a uma cadeira de rodas adaptada. Apesar de a aconselhar a ir para uma residência assistida, ainda que transitoriamente, recusou completamente tal hipótese, pois preferia ficar no único espaço físico que considerava efetivamente seu, neste triste e cruel mundo. Continuava a ler muito, foi-lhe fornecido um computador para estimular possíveis fontes alternativas de interesse, passou a ver programas de televisão como nunca o tinha feito até aí e sentia-se cada vez mais dependente do retorno afetivo da Mary, a cachorra de estimação que com ela habitava.
O seu filho mais novo tinha decidido, entretanto, recomeçar a visitá-la, o que atenuava parcialmente o enorme tédio interior que lhe ia corroendo a alma. Apesar de tudo, queria ainda mostrar aos outros que possuía uma maior capacidade de gerir a sua parca autonomia do que efetivamente tinha, recusando muitas vezes a ajuda da equipa de apoio domiciliário, pelo que não se conseguia assegurar uma higiene e uma alimentação condignas, tendo começado a ter várias infeções urinárias e genitais, e a úlcera sagrada reabrira-se, exalando agora um pestilento cheiro fétido, consequente a um processo infecioso que já não tinha hipótese de ser tratado em ambulatório com eficácia. A muito custo, um certo dia, quando já estava desidratada, desnutrida, febril e sob o efeito dos psicofármacos que tomava amiúde erraticamente, lá aceitou voltar a ser internada no mesmo hospital onde já estivera antes.
Mas, onde? Em que Serviço? Na Urologia? Na Ortopedia? Na Ginecologia? Na Cirurgia Plástica? Sendo certo que cada uma daquelas especialidades poderia dar um contributo pontualmente importante, certamente que havia que assegurar, uma vez mais, tanto quanto possível, um tratamento da doente em toda sua complexa globalidade e não a deixar sentir-se rejeitada, o que só no serviço do seu médico de referência poderia ser conseguido. Assim, não me importando muito com os índices de produção contratualizados com a administração do hospital, lá retive a doente intermináveis meses, pois sempre que ia uns dias a casa, na tentativa de corresponder aos seus insistentes pedidos, a situação clínica agravava-se e tinha de ser logo reinternada. Foram necessários vários desbridamentos cirúrgicos da escara sagrada, pensos diários, antibioterapia complexa e prolongada, até que, não havendo mais nada de melhor a propor-lhe, só restava proceder à amputação de ambos os membros inferiores acima dos joelhos (um deles já junto à arcada crural), pois tinha várias fístulas, focos múltiplos e medicamente intratáveis de osteomielite, a par de um ameaçador compromisso vascular.
O que restava da pessoa que fora outrora era agora quase que uma irreconhecível e tosca caricatura, pelo que a ida para um lar afigurava-se ser inevitável, proposta que aceitou um pouco menos contrariada do que seria a partida de supor, contribuindo para isso a decisão do seu filho mais velho ter voltado a visitá-la, anunciando-lhe que iria ter um primeiro filho. Poder receber a visita do seu neto era, na verdade, a primeira, mas decisiva boa notícia em muitos anos de incomensurável sofrimento e de inconsolável desesperança, tanto mais que se teve de separar definitivamente do seu adorado animal de companhia.
Como é patente, já consultei esta doente muitas dezenas de vezes em múltiplas circunstâncias. Tive, com ela, longas e profundas conversas acerca, tanto da sua doença, quanto da sua vida, ou, mesmo, sobre assuntos de mera circunstância. Contudo, uma delas, jamais a poderei esquecer. Foi num dia que a visitei na instituição para doentes crónicos dependentes onde reside desde há anos, em que exclamou, logo que me viu entrar, com um brilho nos olhos pouco comum, agradavelmente surpreendida que estava com a minha inesperada presença na sua frente: “então doutor, soube que escreveu um livro e que a cerimónia de lançamento decorreu há pouco tempo…!!!”. Olhei-a, em silêncio, algo estupefacto com aquela inesperada invetiva, tentando não dar a entender que tinha percecionado que, no fundo, o que quereria ter perguntado, era, antes: “porque é que não me convidou para a cerimónia?”.
Não sei se compreendeu o real significado da minha hesitação em responder por palavras. Contudo, não deixou passar muito tempo sem verbalizar, logo a seguir, nova interjeição: “o livro tem um título meio estranho, não é…!!!”. Aí, já meio refeito, respondi calmamente: “O livro tem, como título principal, “Ode ou Requiem”. Embora se trate de uma terminologia de índole musical, dado que sou melómano e colecionador, na verdade, o que quis foi aproveitar o significado dessas palavras para, extrapolando, fazer uma analogia com o que se passa com o setor da saúde no nosso País. Ode, significa exaltação ou vontade de homenagear uma determinada personalidade, e, Requiem, significa fenecimento ou morte anunciada de uma pessoa cuja memória se pretende tornar perene. É o que se passa com o setor da saúde, dado estarmos a caminhar do apogeu de um sistema, para a sua extinção”.
Não demorou muito a colocar nova questão: “Compreendi, mas, no concreto, como é que decidiu desenvolver esse interessante e atual tema?”. Voltei a responder, esclarecendo: “está tudo no subtítulo- “Alegoria sobre a natureza do ato médico, a propósito de algumas histórias clínicas reais”. É um conjunto de reflexões, feitas a partir da história clínica e de vida de umas quantas dezenas de pessoas com quem interagi ao longo dos mais de trinta anos de profissão, entre anónimos cidadãos e doentes que estão devidamente identificados, onde se incluem alguns meus colegas de profissão e, finalmente, certos familiares também, a quem dedico música. Como sabe, gosto de escrever e tenho muitas crónicas publicadas, sobretudo na Revista da OM. Só que, desta vez, resolvi, num súbito e incontido rompante, tal como vem explicado na introdução, escrever um livro, logo após ter efetuado uma memorável viagem, que é das coisas que mais aprecio fazer na vida”.
Aí, não se conteve, e disparou à queima-roupa, com um vincado tom de voz, eivado de uma mistura de curiosidade e de antecipada indignação: “E não será que se terá esquecido de aí deixar registada a minha história também?!”. Desta vez, não havia como não responder verbal e prontamente. Disse-lhe, com voz afirmativa, mas certamente nunca suficientemente convincente para si, que: “no livro caberiam de certeza muitas outras histórias que talvez um dia as viesse ainda a contar, mas como não era possível incluí-las todas de uma só vez, a dela e algumas mais, ficariam para nova iniciativa futura”. Fitou-me com um olhar mortiço, simbiose de desilusão e de resignação, pedindo-me para lhe emprestar um exemplar para ler, pois não tinha dinheiro para o comprar. Nunca mais me falou em tal assunto. E, eu, também não. Mas fiquei a saber, por outrem, que acabou por o ler todo…
III)- Reflexões, Resumo e Conclusões
Confesso que não sei se algum dia escreverei outro livro do género, embora seja verdade que tenho muitas outras histórias por contar que encheriam outro volume idêntico. Também não sei, ao certo, porque é que não escolhi esta história para ser incluída em “Ode ou Requiem”. Agora, que está escrita, sinto que, talvez, a melhor decisão seja a de nunca lha dar a ler. Jamais me perdoaria se, agora que está numa fase de relativo apaziguamento psicológico consigo mesma, lhe fosse provocar a emergência de um potencialmente devastador e incontrolável tumulto espiritual, de consequências eventualmente desastrosas e irreversíveis, quiçá físicas também. A verdade é que teve sempre carga viral negativa, pelo que nunca a mediquei com terapêutica antiviral (e talvez nunca o venha a fazer, atendendo também à não deterioração imunológica), pois as suas doenças orgânicas principais são, para além da perda de autonomia pelas razões já expostas, uma osteoporose, um hipotiroidismo, uma dislipidemia, uma anemia multifatorial e uma psicopatia já equilibradas com medicação apropriada, tal como acontece presentemente a muitos dos enfermos deste foro, pois o envelhecimento dá-se como nos restantes, embora com um ritmo mais acelerado. Irá, muito provavelmente morrer com a doença, mas não por causa dela, e, talvez, até, de provecta idade, tal como digo diariamente a muitos dos meus incrédulos doentes.
Resumindo, pode dizer-se que esta doente viveu como podemos supor ter sido o que se depreende do que deixaram dito, de forma lapidar, para a posteridade, duas grandes personalidades da Humanidade, respetivamente, o pai da filosofia grega, Sócrates, e a grande ativista social norte-americana, Hellen Keller. A primeira, que “uma vida sem desafios não vale a pena ser vivida”, e, a segunda, que “a vida, ou é uma aventura audaciosa, ou não é nada”. A que acrescentaria que o dilema que se afigura a qualquer pessoa, no que concerne à conduta a ter perante as alternativas que se lhe colocam no decurso da sua vida, pode resumir-se a uma dicotomia entre o que quis dizer o filósofo dinamarquês, Soren Kierkegaard quando sentenciou que “a vida não é um problema para ser resolvido, mas antes uma realidade para ser experienciada”, e o que a atriz norte-americana, Mae West pensou, quando disse que “só se vive uma vez, mas se se fizer tudo como deve ser, uma vez, é o bastante”. Ninguém é capaz de se atrever a garantir qual seria a história desta doente se as suas opções de vida tivessem sido outras e, ao médico, jamais caberá sequer fazer juízos de valor perante alguém que tomou as decisões que decidiu tomar em consciência, mesmo que impulsionado por um fugaz e inebriante sentimento, quando as consequências do que decidiu fazer, envolveram a sua próprio pessoa, mais do que a qualquer outra.
A concluir, diria que fazer sofrer gratuitamente um doente, jamais fará parte da missão de algum médico. Este, deve, isso sim, com competência, empatia, comiseração, humanismo e bom senso, tentar tudo para evitar ou minorar o sofrimento do seu doente. A sua missão será, assim, tanto mais bem conseguida, quanto melhor souber, com adequação a cada caso particular, ser mais do que “apenas” médico. O ato médico, é um encontro entre duas pessoas de corpo e alma íntegros, em sentido figurado, bem entendido, do qual é suposto resultar o correto diagnóstico e o eficaz tratamento da doença de que o doente padece, mesmo quando outra coisa não é possível ser feita se não paliar. A relação médico-doente, é esse singular encontro a dois, em que o respeito pelo direito ao sigilo e à livre escolha sem prejuízo de terceiros, nunca devem estar ausentes, tal como os intemporais valores da ética e da deontologia profissionais jamais poderão ser alienáveis.
É tudo isto que encontrarão no livro que editei recentemente, resultado de uma iniciativa da OM que me coube coordenar, e que poderão adquirir no decorrer deste evento organizado pelo meu colega e amigo de longa data, Mário Carqueijeiro, a quem desejo as maiores felicidades e que para ele escreveu um interessantíssimo texto que vos convido a lerem, pois os problemas relativos à perceção da autoimagem corporal de cada indivíduo é um dos contextos que mais impede sobre a relação médico-doente, como aconteceu no caso clínico que quis aqui trazer para refletirmos em conjunto ao som de música, claro está.