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O dilema de uma dicotomia

Autor: José M D Poças, médico, editor do livro “A Relação Médico-Doente”, Provedor da Pessoa Doente da LAHSB

 

Carta Aberta à Ministra da Saúde

 

Parece que a filosofia que suporta a política oficial vigente é a de considerar que quem aponta as insuficiências e alerta para os perigos que despontam, estará afinal contra os grandes projetos da sociedade e as principais causas da cidadania.
No que concerne ao que se passa no setor da saúde no nosso país, tal afirmação parece aplicar-se com toda a propriedade, pois vamos tomando conhecimento que, segundo os responsáveis do atual Governo, o desempenho é quantitativamente positivo no que à “produção” diz respeito e que a Saúde passou a ser considerada como prioritária no próximo Orçamento Geral do Estado.
Ao longo de cerca de um quarto de século tenho vindo a publicar vários artigos de opinião na Revista da OM, onde assumo uma posição muito crítica acerca da evolução deste setor da política nacional, sendo certo que tudo o que me move é precisamente o contrário do que o que se pretenderá fazer supor para com quem assim procede.
Em nada e em nenhum momento se poderá inferir que fui ou sou contra o SNS ou que defendo interesses escusos a mando de alguém menos idóneo.
Bem pelo contrário! Tenho-me como uma pessoa livre e independente de qualquer um dos lobbies existentes, apenas me movendo uma questão de sã consciência na defesa das boas causas da Humanidade e, mais especificamente, dos Doentes e dos Médicos. Mais, estou plenamente convicto que integro uma geração de profissionais que optaram maioritariamente por virem para a Medicina por vocação, para servirem com ética a prática do seu mister segundo a legis artis, e que ajudaram, com abnegada entrega, no seu dia-a-dia de trabalho, a concretizar o projeto do SNS que alguém de enorme visão estratégica decidiu mandar implementar, alguns anos após a revolução dos cravos, num país, na altura, reconhecidamente atrasado e amordaçado, pois esteve mais de quatro décadas desprovido das mais elementares liberdades cívicas e onde grassava uma generalizada iliteracia.
Sei que nem todos se dão ao trabalho de perderem ciclicamente umas quantas horas em aturadas leituras e reflexões, e muito menos para escreverem o que lhes vai no pensamento e na alma, no sentido de compartilhar com os seus pares (e mais alguém também…!!!) ideias suficientemente fundamentadas e expressas com toda a frontalidade e coerência, próprias de quem exerce esta inolvidável profissão há quase quatro décadas e gosta de pensar nas coisas importantes da vida.
Tal como sei que muito do que escrevo é perfeitamente entendido pelos que aparentemente se “abstêm”, bem como por muitos cidadãos (meus doentes, mas não só!) com quem tenho feito regularmente esta saudável partilha ao longo do tempo.
Esta posição de assumida irreverência, faz com que seja encarado por alguns daqueles a quem me dirijo, com uma notória incomodidade (embora não explicitamente expressa), mas nem por tal não menos notada, como se fosse uma persona non grata. É por isso que já afirmei publicamente que tenho imenso “orgulho” pelo facto de, já lá vão quase duas décadas, nunca se ter realizado uma cerimónia de inauguração oficial da “nova” enfermaria dos Serviços de Infeciologia e de Pneumologia, que é uma das maiores reservas de quartos de isolamento com pressão negativa do País (tendo “apenas” ativos 4 dos potenciais 11, ou seja, 4 camas de 26 possíveis) e que foi a última obra hospitalar pública a ser financiada com dinheiros comunitários, mediante um processo de candidatura que então liderei, tal como consta da placa colocada à sua entrada, embora esta nunca tenha sido descerrada por nenhuma autoridade ministerial, como é usual fazer-se. E que tanta falta poderá fazer, num cenário extremo de disseminação de uma doença infeciosa de índole contagiosa, tal como no caso presente do novo coronavírus, ou noutra futura pandemia…!!!
Razões que me levam a afirmar, como disse no discurso que li na muito recente cerimónia de apresentação do Livro “A Relação Médico-Doente” (cuja leitura atenta recomendo a todos os políticos), feliz iniciativa da OM de que fui o Editor e Coautor: “… alguns dos que o dizem publicamente defender, por palavras, o que têm feito, desde há uns tempos a esta parte, é asfixiarem o SNS lentamente até à sua total inviabilização a prazo…” e “… não se é bom médico, nem tampouco bom governante, desconhecendo o singular âmago da natureza humana ou sendo-se indiferente às consequências do sofrimento e da deficiência, dado que isso é condição imprescindível, além do mais, para salvarmos aquele que foi (e ainda é…) o melhor serviço público do regime democrático português…”.
Não se trata, pois, de apontar caprichosa e inconsequentemente o dedo acusatório à liderança do atual Ministério da Saúde, bem como, sequer, ao anterior governo apenas, mas antes de constatar que o “problema” já se arrasta há quase três décadas, havendo mesmo como que uma certa continuidade das políticas (sem substanciais diferenças), independentemente dos partidos políticos que circunstancialmente estejam no governo, tal como daquilo que os mesmos vão afirmando quando estão na oposição ou das intenções solenemente proclamadas aquando dos períodos de campanha eleitoral.
Para fazer uma correta análise deste fenómeno, não nos basta ter acesso às sucessivas estatísticas oficiais, mas também (e diria, sobretudo) estar diariamente presente de corpo e alma nos locais onde se desenrola efetivamente a atividade clínica, captando o sentimento de quem presta cuidados de saúde e de quem os recebe, e não (apenas) de quem está, desde sempre (ou de há muitos anos a esta parte) a tratar dos aspetos burocráticos relativos aos inúmeros dossiers, fechado em gabinetes onde, em vez de doentes, se olha com frieza para os números e para os gráficos que vão aparecendo nos computadores, como se isso fosse o espelho fiel da realidade vivida e sentida pelas pessoas. Como aludia a insigne figura de Padre António Vieira “para aprender não basta só ouvir por fora é necessário entender por dentro”.
Alguns exemplos, bastam para motivar uma urgente reflexão: Como reagir ao clima de grande insegurança e de crispação generalizada que tem conduzido ultimamente à multiplicação de casos de agressão a profissionais da saúde, atirados que são para cenários que mais se assemelham a um campo de batalha, do que a um local onde se pratica humanizadamente a arte médica, como seja o caso dos SUs hospitalares? Como entendero facto de se verificar, com crescente frequência, a integração de algumas equipas de urgência, em certas especialidades, por colegas com idades próximas dos 80 anos, se não com uma enorme perplexidade? O que pensar de um número preocupante de serviços hospitalares com apenas um médico no quadro permanente, nos quais a maior parte da atividade desenvolvida é garantida por prestadores externos que aí se deslocam umas escassas horas na semana? O que dizer do facto de muitos serviços não terem assegurado a sua continuidade quando o seu diretor, por motivos de reforma, aposentação, cessação do contrato de trabalho, demissão, doença ou morte, deixa vago esse posto? Como inverter o fenómeno crescente de médicos que pedem redução de horário e se de deslocam apenas algumas horas semanais ao hospital e nem sequer diariamente? Como explicar ter-se chegado ao ponto de ver desaparecer o saudável e imprescindível espírito de equipa, em áreas tão fundamentais e sensíveis como é o caso dos SUs hospitalares, ou ver nomeados Directores de Serviço que não reúnem o consenso e o respeito dos seus colegas que vão passar a dirigir?
Como resolver o avassalador burnout dos médicos dos cuidados de saúde primários, cuja prática profissional diária se transformou literalmente numa linha de montagem de ver doentes aos magotes e à pressa, sem terem tempo sequer para fazer adequadamente uma anamnese e um exame objetivo que poderia evitar a requisição de muitos exames auxiliares de diagnóstico e de promover a tão frutífera relação médico-doente? E, ainda, como dar formação às jovens gerações de médicos nestas circunstâncias, em que, para quem visa os seus horários, só parece ser importante contabilizar o tempo despendido no trabalho assistencial, sobretudo nos SUs, nem sequer se preocupando em acabar com as (por vezes) degradantes condições em que a actividade clínica se desenrola?
Desconhecerão as autoridades que a nossa classe tem, para além do que anteriormente se enumerou, fundadas razões para se sentir desmotivada e desconsiderada? Como fomentar o gosto pelo trabalho nas instituições do SNS, com instalações degradadas, parque tecnológico desfasado das necessidades efetivas dos doentes, carreiras médicas congeladas há anos, ordenados geralmente baixos e sem aumentos na última década, ou com programas de registo eletrónico de assiduidade que são parametrizados, ora para não contabilizam nenhuma das (muitas) horas semanais que os médicos dos cuidados de saúde primários fazem (gratuitamente), ou que, no caso dos hospitais, geram um saldo positivo que é anulado a cada trimestre, se as horas não forem gozadas de seguida, mesmo sabendo-se que, nesse eventual e remoto cenário, haveria uma consequente rotura assistencial inevitável, da qual os responsáveis administrativos lavariam certamente as mãos?
Parafraseando José Saramago, que deixou lapidarmente exarado para a posteridade que “se a ética não governar a razão, a razão desprezará a ética”, é tempo das autoridades responsáveis do setor ouvirem as razões de quem sempre teve a ética como um referencial inalienável, em vez de estar sistematicamente a promover, como disse no referido discurso, “… eufemísticas “reformas”, “reestruturações” ou “requalificações” eternamente adiadas ou adulteradas e pouco consensuais, chavões que, na realidade, se têm caracterizado por estarem, muitas vezes, vazios de conteúdo e desinseridos de estratégias coerentes ao serviço do Bem Comum, apenas mecanicamente repetidos porque o calendário eleitoral a isso ciclicamente obriga, tendo como consequência constituírem-se como uma ameaça crescente à qualidade da medicina praticada e com as implicações que estão à vista de todos os mais lúcidos e informados e que de nada vale a pena negar ou esconder …”.
Srª Ministra, o verdadeiro dilema desta dicotomia, não é tanto entre os que dizem estar a favor ou contra o SNS, mas antes entre aqueles que (ainda que inconscientemente…) o asfixiam até à sua completa inviabilização e os que, não se cansando de apontar as suas insuficiências e omissões, para ele sempre contribuíram (e continuam a contribuir) sem reservas, todos os dias, mas, apenas, até um certo dia… Porque ir embora sem deixar garantida a continuidade de algo que se criou e viu crescer, sabendo que corresponde às necessidades vitais de muitas centenas de doentes e de um conjunto alargado de devotados profissionais, não é algo que engrandeça a imagem de quem diz defender tal magnânima causa.
Espero que estas palavras a consigam influenciar positivamente nas suas decisões, pois o SNS está assente numa geração presentemente na sétima década da vida, e ou se inverte rapidamente o sentido das políticas, ou o fim daquilo que se diz defender estará perigosamente próximo.