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Peste no século XXI

Autor: M.M. Camilo Sequeira, Médico aposentado

 

Os registos históricos dizem-nos que a Yersinia Pestis dizimou a população da Eurásia em dois períodos dramáticos. O primeiro entre cerca de 541 e 750 com dezoito grandes surtos conhecidos e o segundo entre cerca de 1325 e 1494 com um número superior de grandes surtos. Os seguintes, ainda que igualmente dramáticos, ocorreram com carácter menos generalizado. O período de “silêncio” histórico da doença, entre o final da primeira pandemia e o início da segunda, durou 575 anos.

As condições sócio sanitárias actuais não são comparáveis às desses anos e não só pelos saberes farmacológicos mas também por tudo que directa ou indirectamente se relaciona com regras de sanidade que temos hoje como adquiridas sem retorno. Por isso a possibilidade de um dramático pandémico pela peste parece não ter sentido no tempo que vivemos.

No entanto a comparação entre algumas variáveis desse tempo passado com o tempo presente e a sua aparente relação com o catastrófico das pandemias em número de vidas perdidas justifica reflexão sem preconceitos sobre este pretendido absurdo.

Presentemente a peste continua a ter presença em África. E nos últimos 500 anos tem tido surtos na Europa que se não revelaram de tão dramática generalização como antes. Ora 500 anos é quase o mesmo tempo que separa os dois dramáticos históricos e embora não haja qualquer evidência de ciclicidade nas pandemias sabemos que há condições sociais de um e outro tempo que são semelhantes. Será que tem sentido presumir que as pestilências preferem manifestar-se em contextos sociais específicos?

Pestilências

As origens das pestes históricas são diferentes: a primeira surgiu entre a Palestina e o Egipto e a segunda no deserto de Gobi. Não sabemos exactamente o que aconteceu para que as pulgas tenham transmitido a doença de forma tão generalizada naquelas particulares ocasiões pois o agente encontrava-se nos seus aparelhos digestivos há muito. Mas sabemos e talvez seja esta a única resposta relevante que as vias comerciais foram os responsáveis pela sua rápida disseminação e que os surtos foram recorrentes, com mortalidade sempre elevada. Até um tempo em que, também sem que saibamos exactamente porquê apesar de sabermos que o rato hospedeiro desapareceu das áreas urbanas e que a medicação passou a ser eficaz, a doença parece perder a capacidade para se revelar como pandemia generalizada.

Os surtos, mormente os iniciais, ocorreram em períodos de relativa (relativa para os padrões da época) estabilidade conflitual, com uma muito acentuada estratificação social, um grau de desigualdade elevadíssimo e com populações numerosas. O que se julga ser uma consequência normal dos outros factores: mais estabilidade social implica mais crescimento e partilha de alimentos e, por isso, maior natalidade.

São estas variáveis, também características do nosso tempo, que justificam que, pelo menos, pensemos na peste como doença potencial no século XXI. E não vem ao caso referir os meios de tratamento de que hoje dispomos como anulador do risco pois qualquer agente bacteriano tem capacidade para, contra a vigilância apertada que lhe façamos, adquirir resistências e mostrar agressividade inesperada fora da norma que temos como racional.

E não estou a referir-me aos vírus letais que se têm revelado, principalmente em África, como resultado da cada vez maior ocupação pelos humanos do espaço vital dos seus hospedeiros. Invasão esta resultante das mais diversas razões: expansão de áreas agrícolas, caça por diminuição dos recursos habituais, aventura acrítica de “gente rica”, enfim, exploração do desconhecido. Estou a pensar antes no comum agente da tuberculose que, silenciosamente, se foi adaptando aos tratamentos que descobrimos criando uma realidade em termos de resistência que ainda não se disseminou de forma descontrolada mas que noutras bactérias nos pode causar surpresas de custo social incalculável.

E não estar preparado para imaginar respostas adequadas a qualquer previsível dramático possível é, decerto, um dos caminhos para o desastre.

Embora as variáveis que refiro também tenham existido em épocas livres de pandemias pestíferas pela Yersinia o contexto de “sobrepopulação e de desigualdade social estruturada de dimensão absurdamente elevada” em que estas se desenvolveram, tiveram igualmente consequências em perda de vidas humanas muito sobreponíveis. De facto a peste naqueles contextos e aqueles contextos sem a peste tiveram consequências similares que não se conseguiram evitar mesmo com as medidas de correcção ou controlo que se implementaram.

O êxito dessas agressões revelou-se numa redução maciça das populações pela morte indiscriminada de todos os estratos sociais embora com perdas muito mais acentuadas dos que tinham pouco mais que a vida como expressão de sobrevivência.

Se é que viver por si só pode ser razão de sobrevivência.

 

Recursos e tecnologia

Desde que o padre Malthus exprimiu a sua preocupação com a potencial incapacidade de os recursos exploráveis do planeta poderem satisfazer as necessidade de populações em contínuo crescimento que se tem acreditado e, aparentemente, demonstrado ser esse um falso problema porquanto a tecnologia cria, também de forma contínua, novos recursos.

Não sendo uma tese consensual é a que mais nos acalma porque permite manter a ilusão de que para cada problema novo e complexo que surja na nossa vida quotidiana a história dos homens mostra haver, ou ter havido sempre, uma alternativa inovadora que anula o dramático desse novo problema.

Mesmo que isto possa ser verdade, o que, repito, não é consensual, os defensores deste factor de acalmia esquecem, ou ignoram, o custo enormíssimo em sofrimento e em perda de vidas causadas por esses agressores. Custo que persiste até ao tempo em que são encontradas e depois aplicadas as inovações correctoras da agressão que a tecnologia ou outro agente nos consigam oferecer.

Pelo que tem sentido pensar em problemas que provavelmente nos atormentarão num futuro talvez menos distante do que desejaríamos. E a partir dessa reflexão, apreciando-os como reais a curto prazo, procurar as medidas preventivas que embora os não impeçam de nos incomodar deverão limitar o dramático potencial das suas consequências.

Vivemos hoje o apogeu da vida partilhada num planeta ocupado por um número de seres humanos nunca antes imaginado. Talvez neste momento estejam simultaneamente vivos 4% do total de homo sapiens sapiens que pisaram este planeta. Mas é uma partilha muito mal partilhada. Porque temos ao lado dos que se podem chamar classe média e que existem com paz e com benefícios sociais adquiridos que se desejam permanentes, uma franja que é metade de nós e que subsiste, se isso é subsistir volto a dizer, com 1 Euro por dia. E temos uma outra franja de 1 por cento de sapiens sapiens que concentra em si mais de metade do valor económico de todo o mundo.

E enquanto a franja dos deserdados está a crescer a dos privilegiados modifica-se com um aumento de vantagens sempre mais acentuadas para um número cada vez menor desses beneficiados. Dito de outra forma, entre os privilegiados vai-se afirmando um grupo particular destes que são ainda mais que beneficiados. São privilegiados entre os muito privilegiados.

 

Outras pestilências?

Também é próprio destas sociedades onde a peste-doença surgiu haver uma mistura, se não criminosa pelo menos quase criminosa, entre os possidentes das fortunas “pornográficas” e os gestores da “coisa pública”. Ou seja, mesmo que uns e outros sejam diferentes há óbvia incapacidade destes últimos para desenvolverem medidas que corrijam as disparidades entre os extremos de riqueza na sociedade que gerem. Porque os ricos muito ricos e cada vez mais ricos, ou por participação directa ou por agentes interpostos, utilizam essa riqueza para estarem sempre a enriquecer mais à custa de quem, ao mesmo tempo, vai empobrecendo sem alternativa.

E sem alternativa porque o voto, sendo a voz do povo, é infelizmente uma voz muito fininha. Mas também porque o valor do trabalho diminui com o aumento da sua procura por uma população, jovem, que dele depende. E vale ainda menos quando, como hoje, se criam alternativas tecnológicas que desobrigam o patrão de ganhar explorando o empregado. A realidade virtual que actualmente endeusamos como herói dos ganhos da tecnologia satisfaz esta condição tornando ainda mais gravoso o contexto de desigualdade de um passado próximo que já era tão desigual.

E havendo no mesmo tempo menos oferta de trabalho (emprego) e aumento populacional e com as leis de mercado a serem defendidas como agentes exclusivos do progresso contra o Estado como é que se estruturarão politicamente as relações distributivas que julgamos ser dever da governação? Parece que esta terá de mudar. Mas ninguém sabe como nem, aparentemente, para onde. Se é que esta dúvida tem sentido.

E para se encontrar este caminho novo não se pode contar com o apoio do agente económico predador porque a sua vista é curta e acredita, apesar de a História o não confirmar, que o seu estatuto social é absoluto e indestrutível. E nem consegue pensar o amanhã em termos de futuro da sua descendência. Acha que se lhe foi possível ser predador porque o não hão-de ser também o filho e o neto?

E em boa verdade também o gestor profissional da “coisa pública” tem as mãos atadas para se confrontar, em vantagem, com estes imprecisos agentes perturbadores da ordem cooperativa e da complementaridade de benefícios que alguns deles bem desejariam implementar. E são condicionados, quiçá impossibilitados, exactamente pelo seu estatuto de profissionais de gestão da “coisa pública”. Porque ao serem preparados, durante toda a sua vida, para esse objectivo foram criando ligações, compromissos, fragilidades, fazendo cedências aqui e ali aos poderosos, porque são eles que influenciam e controlam o poder de decisão política, para poderem progredir no que é, de facto, a sua profissão. São políticos profissionais seja qual for a profissão prévia ao seu envolvimento na política (se a houve) ou a formação académica que tenham obtido.

O exercício do poder não se associa ao crime ou à corrupção como tantas vezes se afirma por convicção não demonstrada. Mas as relações criadas e a dificuldade em se integrarem no mundo “normal” do trabalho “quando e se perderem o emprego político” limita a sua imparcialidade, restringe a sua liberdade de decidir em termos abrangentes e quase os obriga a concessões que muitos acharão indignas. Mas a que cedem para terem, como compensação pós-política, “empregos” principescos ao lado do poder que lhes permita sobreviver com estatuto económico similar ao que tinham aquando do exercício das funções governativas.

As pestilências são um dos agentes correctores, ainda que parciais, destas incongruências da vida em estabilidade, com prosperidade e com aparente ausência de conflitualidade generalizada. Porque matam indiscriminadamente e embora prefiram em número absoluto os pobres essa preferência é menos evidente quando se comparam estatisticamente as mortes por grupos de possidência. Poucos dos muito possidentes que morrem são percentualmente equivalentes a muitíssimos dos que morrem que de posse têm nada ou pouco mais que isso.

E gosto de me repetir dizendo que é sempre razoável interrogarmo-nos sobre se nos mortos por causas sociais evitáveis não se encontraria o vivo que saberia como corrigir os erros que conduziram, com boa ou má justificação, ao causador dessas mortes.

Claro que se se quiser ver a pestilência como factor corrector das desigualdades que os excessos populacionais e o crescimento do poder económico ininterrupto de alguns implicam (sem que se conheça a fórmula não violenta de o restringir ou limitar) nada se fará para nos protegermos. Será um factor regulador da natureza que responde às limitações dos homens criando condições para novos recomeços. Mas e se não for?

 

Peste hoje…

Peste pandémica generalizada no século XXI parece uma hipótese estranha, talvez mesmo, absurda. Mas se lermos os relatórios das diversas organizações internacionais sobre a perspectiva da meteorologia e suas consequências no último quartel deste século como resultado das já visíveis mudanças climáticas julgo que o estranho deixará de o ser.

As pestilências históricas nunca formam agentes únicos do dramático destrutivo a que estão associadas. Houve ou problemas meteorológicos que causaram enormes secas e mudanças das temperaturas médias anuais, ou conflitualidade social com profetas a dar-lhes corpo e seguidores ou desordem nos poderes com perda da normal funcionalidade do Estado. E outros factores. Mas o que é inegável, em termos de apreciação abrangente, é que esses contextos facilitaram a disseminação de agentes bacterianos cuja viagem pelo planeta se acompanhou de milhões de mortes sem alternativa e de desagregação das formas de vida atingidas.

A pestilência deste século será causada ou não pela Yersinia mas será inequivocamente uma pestilência com consequências dramáticas. Porque, como escreveu Elias Tuma no seu estudo sobre 26 séculos de reformas agrárias “quanto mais fundamental e generalizada for a crise, mais imperativa, mais radical e mais provável parece ser a reforma (agrária)”.

As investigações clínica e farmacológica podem ser julgadas como obstáculo ao dramático que descrevo. E a crença na perfeição absoluta dos algoritmos reforça essa sensação de segurança. Mas, digamo-lo bem alto: nem os Médicos são deuses nem os algoritmos, mesmo os que num futuro próximo se considerarem como autónomos (abrenúncio), têm competência para limitar a expressão da natureza e ou a vida do planeta.

Somos muito mais pequenos do que nos vemos e muitíssimo menos donos da nossa vontade do que temos capacidade para aceitar.

Mas é o que somos!

 

E Portugal?

A peste medieval está associada a um importante acontecimento da História de Portugal, a transferência do poder real da dinastia afonsina para a de Aviz. É relativamente consensual que a burguesia enriquecida que desejou esta mudança se construiu sobre as ruínas de vidas perdidas que a pandemia provocou no país. Depois deste surto a doença existiu entre nós até aos nossos dias embora com gravidade variável sendo a peste do final desta segunda dinastia uma das mais mortíferas.

Mas julgo que paira no ar a convicção de estar iminente uma sucessão de desgraças no país porquanto na última década têm sido construídos e continuam a construir-se muitos hospitais todos ou quase dependentes de entidades privadas.

O que parece adequado interpretar-se como prova de que ou o país está muito doente sem nos apercebermos disso ou espera-se que o venha a estar em breve. Pois sabemos bem que como estes investidores predadores não desperdiçam dinheiro se investem em novos Hospitais é porque sabem que vão ter a curto prazo retorno maior.

Sabemos que a população portuguesa não está a aumentar. Por isso, aparentemente, a sua saúde global não deveria estar a piorar. Mas há uma franja desta população que, de facto, está a crescer de forma que pareceria absurda há poucos anos atrás: os mais velhos. E se, como parece razoável, este afã construtor, esta perspectiva de lucro, esta promoção do consumo estiver relacionada com o produto “velhos” teremos de concluir, com tristeza para muitos, que o envelhecimento das populações e as suas consequências serão mais outra pestilência do futuro próximo.

Mas contradição das contradições esta será uma forma de peste que se não quer eliminar. Porque se for eliminada as perdas dessas vidas serão vistas como perdas económicas já que, como os velhos não produzem de forma activa, têm de ser mantidos vivos e consumidores de serviços de saúde para assim participarem, activamente, na construção do progresso.

Repito: é o que somos!