Um médico de família foi recentemente agredido por recusar passar uma baixa – ilegal e injustificada, saliente-se – a uma utente. Descontente, esta chamou o companheiro que entrou no consultório e desatou aos murros ao médico. Tempos complexos e desumanos! Em que os profissionais de saúde se confrontam, frequentemente com situações de violência e incompreensão no seu local de trabalho.
Em primeiro lugar, louve-se a coragem deste médico de família, recém-especialista, que teve a ‘ousadia’ de denunciar o caso. Sim, leram bem, ousadia de recontar a sua experiência, tantas vezes calada por tantos e tantos profissionais de saúde. Por medo de serem mal-interpretados pelos chefes ou colegas, por temor de retaliação dos próprios agressores, por descrença de que não valerá a pena a denúncia.
É no silêncio que tantas vezes se abafa o pesado fardo da rotina de trabalho nos centros de saúde e hospitais públicos pelo país fora: são os equipamentos em falta, os espaços físicos que não oferecem condições dignas a médicos e doentes, os sistemas informáticos e computadores que bloqueiam, os dispositivos que falham, os recursos humanos que rareiam ou nem sequer estão lá (seguranças inclusive, como se verificou na unidade de saúde onde decorreu este triste e indigno episódio)…
O clima de tensão e de esforço adicional a que médicos – e todos os profissionais de saúde – estão sujeitos no dia-a-dia transformou-se numa sobrecarga demasiado excessiva, explosiva até, e perigosa no que muitas vezes pode potenciar a conflitualidade entre as pessoas. Só nos primeiros nove meses de 2017, foram registados mais de 500 incidentes de violência contra profissionais de saúde, segundo dados da Direção-Geral da Saúde. Desde há 10 anos, quando foi criado este sistema de registo de incidentes na área da Saúde, já se contabilizaram mais de 3100 notificações… e a imensa maioria dos casos nem chegam ao registo, silenciadas no desalento de quem tem de continuar a cumprir a sua função.
Depois dos enfermeiros, são os médicos o grupo-alvo preferencial dos agressores – maioritariamente utentes/doentes. Assédio moral, sobretudo, violência física e violência verbal são as principais ‘armas’ arremessadas contra o sistema, contra os profissionais de saúde.
A relação médico-doente sofre constantes ameaças todos os dias. A diferentes níveis. Os utentes queixam-se às autoridades, ameaçam com histórias nos jornais, reclamam nas redes sociais. E os profissionais de saúde? A imensa maioria fica em silêncio. Pior, muitos chegam a um estado tal de exaustão e desânimo que desistem. E quando se leem notícias que dão conta de (mais) um jovem médico interno que saltou para a morte de um 33º andar em Nova Iorque, como não questionar: Porquê? De quem é a responsabilidade? Do poder político, da (in)justiça, das pessoas, da desumanização?
É precisamente no silêncio das mortes de colegas, no sofrimento sem voz de tantos médicos e profissionais de saúde, que me indigno, todos os dias, com o estado da saúde em Portugal nos dias de hoje. O burnout na comunidade médica portuguesa é um assunto urgente, muito sério que tem de ser debatido de forma aberta. Sem preconceitos mas com resultados.
Cerca de 66% dos médicos admitem estar em exaustão, um dos três mais relevantes indicadores de burnout, segundo um estudo do ICS da Universidade de Lisboa realizado em parceria com a Ordem dos Médicos (OM). Quase dois terços dos inquiridos (60,5%) admitiram estar insatisfeitos ou muito insatisfeitos com o excesso de horas de trabalho num outro estudo do ISP da Universidade do Porto, em colaboração com a OM. Descontentes com o tempo disponível para família, amigos ou lazer são ainda mais: 74,1%. E quase metade (46,6%) considerou que os descansos compensatórios legais não são respeitados, chegando um quarto dos médicos (26%) a admitir que ultrapassa o horário de trabalho estipulado todos os dias.
Várias outras investigações têm confirmado os efeitos deste desgaste extremo, da pressão do dia-a-dia – muitos médicos antecipam a reforma, muitos jovens optam por trabalhar apenas no setor privado ou até por sair do país, em busca de melhores condições de trabalho.
Sinais preocupantes que nos devem fazer levantar a voz. Sem medo. Está em causa a Saúde do país e de todos nós.
Miguel Guimarães
Bastonário da Ordem dos Médicos