Agradeço a confiança, uma vez mais, em mim depositada pelos meus pares, expressa também pelo aumento da participação eleitoral, mesmo num cenário de candidatura único, e dirijo um caloroso cumprimento a todos os presentes nesta cerimónia. Hoje, permitam-me reconhecer a história do local onde nos encontramos. Nesta casa, a Casa de Hipócrates em Portugal e com décadas de luta pelos valores da medicina, da ética e da liberdade. É aqui que tantos dos meus antecessores levantaram a voz em defesa do direito à saúde de todas as pessoas.
Hoje, ao assumir novamente este honroso cargo, faço-o com a determinação e sentido de missão, a mesma que tive desde há dois anos atrás. Honrar o legado da medicina humanista e projetar um futuro à altura das nossas aspirações. Em 2025, o mundo enfrenta uma profunda crise e instabilidade marcada por guerras na Europa e no Médio Oriente, perda das referências geopolíticas e crises humanitárias que têm inevitáveis repercussões em toda a Europa. Neste cenário intrincado, a Ordem dos Médicos reafirma o compromisso com os princípios fundamentais da Carta das Nações Unidas, defendendo a paz, segurança e direito universal à saúde.
Como afirmou Martin Luther King numa mensagem que ecoa com força e urgência nos dias de hoje: “De todas as formas de desigualdade, a injustiça no acesso aos cuidados de saúde é mais chocante e desumana.”
Perante os desafios globais e nacionais exigimos que a saúde se mantenha como prioridade absoluta, reforçando o acesso equitativo e a justiça social. Não há direitos humanos sem saúde e não há saúde sem direitos humanos. Nenhuma ordem profissional pode ignorar o contexto em que os seus membros exercem, no nosso caso, um contexto primordial é o Serviço Nacional de Saúde, autêntico alicerce da nossa democracia. É motivo de legítimo orgulho para Portugal.
O SNS tem protagonizado um percurso notável desde a sua criação, em 1979, conquistando ganhos inestimáveis na esperança de vida, na redução da mortalidade infantil e materna e na melhoria do acesso à saúde. Contudo, este orgulho legítimo convive hoje com uma inquietação crescente. O SNS atravessa um momento crítico sem precedentes. Temos o dever ético e cívico de o proteger, defender e fortalecer, denunciando claramente as políticas públicas que, ao longo da última década, o têm vindo a fragilizar e comprometer.
Fazê-lo é defender a Constituição, proteger a dignidade do exercício médico e assegurar direitos básicos de todos os cidadãos, especialmente daqueles que mais necessitam. O cenário é conhecido: urgências hospitalares em rutura, médicos exaustos, doentes em sofrimento. Portugal lidera no número de episódios de urgência que ocorrem, muitas vezes por falta de alternativas viáveis. O sistema tornou-se refém de uma lógica urgenciocentrica que nenhum outro país conseguiria sustentar. As listas de espera crescem e os recursos escasseiam.
Médicos querem tratar, mas faltam gabinetes, blocos ou agenda. A pobreza também é a doença oculta detrás das doenças. Quem tem menos recursos adoece mais e morre mais cedo. Em Portugal, cerca de 28% da despesa em saúde é paga diretamente do bolso das famílias, o dobro da média europeia. Muitos abdicam das suas consultas ou de comprar os seus medicamentos.
A persistente insuficiência de investimento na saúde continua a suscitar profunda preocupação. Portugal destina apenas 6,8% do PIB a esta área, valor significativamente distante dos 8,8% registado, em média nos 15 países mais desenvolvidos da Europa, dos quais Portugal também faz parte. Os recentes compromissos assumidos pelo Governo português no contexto da NATO não atenuam esta inquietação, dada a limitação dos recursos financeiros disponíveis no nosso país.
Continuamos a assistir a hospitais sobrecarregados por dívidas, centros de saúde carentes de manutenção adequada e carreira médica sistematicamente desvalorizada. O subfinanciamento é uma opção política deliberada, com consequências palpáveis e dolorosas, especialmente para as pessoas mais vulneráveis. Também as políticas de recursos humanos falharam redondamente. Um quarto dos médicos do SNS tem mais de 65 anos.
Faltam médicos de família para 1,6 milhões de utentes, número esse em contínuo crescimento e que reflete a desvalorização dos cuidados de saúde primários. A Ordem dos Médicos tem sido uma voz ativa nesta luta e assim continuará. Queremos reformas estruturais, reorganização das urgências, reforma organizacional dos hospitais, instituição de uma nova carreira médica mais atrativa, incentivos para fixação de especialistas e garantia de liderança médica nas ULS.
Defender os cuidados de saúde não significa ignorar o setor privado e social, bem pelo contrário, ambos têm o seu lugar num sistema equilibrado. Todavia, sem um SNS forte, o acesso torna-se desigual e a equidade não passa de uma ilusão nos panfletos eleitorais.
Precisamos de desburocratizar profundamente o SNS e estabelecer uma interoperabilidade digital efetiva, permitindo uma uma comunicação fluida, ágil e eficaz entre os vários níveis e unidades de saúde.
Atualmente, os médicos desperdiçam inúmeras horas em tarefas administrativas redundantes e evitáveis. Um tempo precioso que deveria ser integralmente dedicado ao cuidado dos doentes. É essencial e incontornável integrar e potenciar a inovação tecnológica, seja através da telessaúde, telemedicina, equipamento portáteis de monitorização ou inteligência artificial. Uma revolução inevitável e transformadora nas nossas vidas, sem nunca nos esquecermos deste encontro entre dois seres humanos. Um que procura alívio e conforto, outro que oferece esperança e cura. Unidos por uma arte poderosa, compassiva e humana da relação médico-doente.
Como é admissível, por exemplo, não termos em 2025 um processo digital único em saúde? Tal permitiria acesso rápido à informação clínica, garantindo diagnósticos precisos, tratamentos eficazes e maior segurança para os doentes. Reduziria tempos de espera, evitaria exames duplicados. Um gesto simples, nunca concretizado. Perdido em promessas nunca cumpridas. Também não esquecemos as dificuldades enfrentadas pelos médicos que trabalham noutras áreas do Estado e para as quais urgem soluções. No Instituto de Medicina Legal, nos estabelecimentos prisionais, nas Forças Armadas e noutros organismos públicos, os médicos dos setores privado e social podem contar sempre com a intervenção atenta, ativa e incansável da sua Ordem.
Exercer a medicina em Portugal tornou se um desafio enorme. Muitos médicos sentem-se desvalorizados e exaustos por falta de condições de trabalho. Assistimos a um êxodo de talento e a um inverno demográfico na medicina, com muitos médicos experientes prestes a aposentar-se pouco jovens médicos dispostos a ficar. É fundamental defender uma formação médica de excelência, modernizando o internato médico e a formação contínua. Cuidar de quem cuida é uma obrigação indeclinável do Ministério da Saúde, a quem cabe garantir com urgência, que os médicos disponham de condições de trabalho dignas, com horários adequados, conciliação da sua vida laboral com pessoal e eliminação imediata de ambientes profissionais marcados por violência ou assédio.
É imperativo implementar políticas que previnam ativamente o burnout e a exaustão e assegurem um ambiente de trabalho seguro, saudável. Um médico respeitado e protegido consegue exercer melhor a sua atividade e terá motivos sólidos para continuar no SNS.
Nos últimos três anos, enfrentamos uma grave ameaça à autonomia da Ordem dos Médicos, materializada na aprovação da nova lei-quadro das ordens profissionais que impõe alterações estatutárias prejudiciais à independência técnico-cientifica dos médicos. Quero deixar claro que esta autonomia constitui um pilar essencial para a segurança dos doentes, garantindo que a regulação médica se alicerce no rigor científico e ético e não em interesses político- partidários, económicos ou vontades do momento. Desde a primeira hora denunciamos que esta lei fere de morte os princípios e valores da medicina.
A Ordem dos Médicos contou com a solidariedade internacional inédita e unânime de toda a comunidade médica europeia. Não aceitamos ingerências que fragilizam competências fundamentais como a formação médica ou o reconhecimento das qualificações, a clarificação inequívoca do ato médico é imperiosa para impedir o entusiasmo profissional, a usurpação de funções e combater as pseudociências que ameaçam diariamente a saúde pública.
Queremos uma legislação clara e eficaz que exija que cuidados de saúde diferenciados só sejam praticados por quem detém as competências e qualificação médicas necessárias.
Precisamos reformular a carreira médica única e transversal, que inicie no internato e abranja todos os setores: público, privado e social e seja verdadeiramente meritocrática. Uma carreira progressiva que valorize a excelência clínica, a formação, a investigação científica e a assunção de responsabilidades de gestão.
É necessário pôr fim à desregulação laboral contratual e à proliferação desordenada de regimes contratuais que fragmentam as equipas médicas, minam o espírito de coesão e comprometem a entrega a um trabalho médico dedicado, estável e com continuidade.
Recentemente, o programa do Governo anunciou a revisão da Lei de Bases da Saúde. Será um processo decisivo em que a Ordem dos Médicos conta participar, colocando a sua experiência e visão ao serviço de uma melhor legislação.
Excelentíssima Senhora Ministra da Saúde,
defenderemos sem cedências, ou ambiguidades, que a nova Lei de Bases consagre os princípios que consideramos irrenunciáveis: a universalidade e equidade no acesso a qualidade e segurança dos cuidados, a valorização dos médicos e a responsabilidade do Estado em promover um SNS eficiente e humano. Seremos uma voz sem preconceitos ideológicos, independente e técnica, com visão humanista e clínica, a aconselhar os legisladores para que o novo enquadramento legal da saúde sirva verdadeiramente os interesses das pessoas e dos profissionais. Um novo rumo para a saúde.
Partilho uma reflexão intemporal do escritor Albert Camus. “Cada geração sente- se condenada a refazer o mundo. No entanto, a minha geração sabe que não irá refazer o mundo. A sua tarefa é porventura, ainda maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça.” Remete-nos também, esta citação, para aquele que é o nosso papel médico e cívico, responsável e transformador.
Entre os nossos projetos para o mandato, como a Academia OM, a Literacia, a revisão do enquadramento jurídico do internato médico, a publicação da tabela de nomenclatura e valores relativos dos atos médicos, a informatização da Ordem dos Médicos, a agenda curricular do médico, a aprovação do novo Código Deontológico entre muitos outros projetos.
Destaco o Fórum “Um Rumo para a Saúde”, um amplo espaço de reflexão, debate e construção que reunirá médicos, profissionais de saúde, académicos, decisores políticos e sociedade civil de todas as áreas. As suas conclusões serão o nosso contributo para o país, com propostas concretas e uma visão de longo prazo para melhorar o sistema de saúde e defender os doentes.
Queremos que a Ordem dos Médicos seja uma força construtiva e agregadora, edificando pontes entre todos os intervenientes e apontando soluções para os desafios do presente e do futuro. Precisamos de um rumo para a saúde que reconheça plenamente o valor dos médicos. Garantindo-lhes condições dignas, adequadas e justas para o exercício da sua atividade. Precisamos de um rumo para a saúde que consagre uma nova carreira médica transversal a todos os sectores, sustentada na competência, no mérito e na equidade.
Um rumo para a saúde que reconheça sem ambiguidades a medicina como uma profissão de elevado risco e desgaste rápido, garantindo mecanismos claros de protecção e medidas compensatórias. Um rumo para a saúde que invista fortemente no internato médico, na formação contínua, na inovação científica e na investigação que privilegie a promoção da saúde, a prevenção da doença, a literacia e a educação para estilos de vida mais saudáveis.
Um rumo que reconheça a importância estratégica das regiões mais desfavorecidas, garantindo uma equidade territorial plena no acesso à saúde, tratando todos os doentes por igual e que promova também políticas sustentáveis e multidisciplinares no espírito de uma só saúde, One Health, integrada e abrangente.
Acima de tudo, um rumo para a saúde que torne a saúde uma verdadeira prioridade nacional, protegendo todos e assegurando um futuro digno, justo e seguro.
Terminando, estou quase a terminar.