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Este país não é para velhos… nem para profissionais de saúde!

Autores: Miguel Guimarães (bastonário da Ordem dos Médicos); Ana Paula Martins (bastonária da Ordem dos Farmacêuticos) e Miguel Pavão (bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas)

*este artigo foi publicado originalmente no jornal Expresso. Disponível AQUI

 

Cuidar de quem cuidou de nós, de quem se sacrificou para que Portugal fosse hoje um país diferente, parece, mais uma vez, não ter eco nas decisões políticas sobre as prioridades no combate à pandemia provocada pelo SARS-CoV-2. Os mais velhos ficaram novamente para trás. E não foi só nos lares, onde as equipas de apoio chegaram tarde ou não chegaram. Nem nos internamentos sociais, de quem fica a ocupar uma cama de hospital porque não tem para onde ir.

Foi também na estratégia de vacinação contra a COVID-19, uma decisão soberana do Estado português, que se fundamenta em critérios científicos e de operacionalidade, mas em que a idade, ao contrário de que aconteceu no Reino Unido, na Alemanha, na França e nos Estados Unidos, não foi o fator prioritário para proteger aqueles que são as maiores vítimas da COVID-19: os cidadãos com mais de 65, 70 e, sobretudo, a partir dos 80 anos. A sua inclusão numa fase inicial da campanha de vacinação não se justificava apenas à luz da ciência, dos dados epidemiológicos, mas também no contexto de um debate ético fundamental a um país cuja evolução demográfica obriga a uma atenção particular sobre as condições de vida em que os nossos mais velhos vivem ou sobrevivem.

Ao fim de várias semanas de debate público sobre o tema, o Ministério da Saúde acabou por assumir então os mais velhos como uma prioridade. O diálogo e a solidez da decisão tinham obrigação de imperar. Mas foi preciso vir a Comissão Europeia definir o objetivo comum, a regra 80-80-80: vacinar até março 80% dos profissionais de saúde e 80% dos cidadãos acima dos 80 anos. Portugal, na presidência da Europa, não podia fazer outra coisa.

Nada mais simples de operacionalizar, porque a idade confirma-se através do cartão de cidadão, ao contrário de doenças para as quais não temos informação fidedigna nem a vamos conseguir arranjar em tempo útil. Nada mais fácil de explicar aos cidadãos, que pagam parte deste esforço financeiro de muitos milhões de euros com os seus impostos, e que não deixarão de querer proteger os seus pais, avós, familiares, cujo valor social devia merecer o respeito e a solidariedade entre gerações. Os mesmos cidadãos que não discutem a vacinação prioritária dos seus profissionais de saúde, únicos companheiros que têm quando precisam de assistência, muitos no fim da vida. Diamantes preciosos, cada vez mais raros e necessários nesta tempestade em que estamos mergulhados e sem fim à vista.

O que certamente os portugueses não sabem, mas precisam também de saber, é que há ainda milhares de profissionais de saúde por vacinar neste país. Médicos que estão no Serviço Nacional de Saúde (SNS), e no sector privado e social, médicos dentistas, enfermeiros ou farmacêuticos que lutam diariamente com o medo de terem de fechar perante a infeção de um dos seus colaboradores. Nas clínicas, consultórios, farmácias, laboratórios de análises, que trabalham noite e dia, também para o SNS, no apoio a doentes COVID e não-COVID. Ninguém ainda foi vacinado!

Vacinaram-se profissionais de saúde em alguns hospitais privados há umas semanas e a partir daí… nada. Ou pelo menos nada que seja público, transparente, além do número total de vacinas administradas. Onde e a quem foram dadas são informações fundamentais para que não haja especulação sobre desvios de vacinas para pessoas que não estão contemplados nesta fase. Temos direito a esta informação, exigimos transparência.

Aqui chegados, ao invés de se ter assumido, de forma razoável e prudente, a vacinação dos três mais altos cargos do Estado, opção inequívoca e facilmente explicável, ou até dos Presidentes de Câmara, por serem os responsáveis pelo território em caso de catástrofe, temos agora uma nova prioridade: ser membro do Governo, ser deputado, ser conselheiro de Estado, magistrado do Ministério Público, ser enfim…, uma lista que dói só de ver! Afinal, o que queremos evitar com a vacinação destes cidadãos e não outros? Quais os critérios? Qual a urgência? São mais indispensáveis do que qualquer outro cidadão que todos os dias se levanta para trabalhar e manter o país aberto? Onde fica a credibilidade do Estado?

Perante o calendário de distribuição de doses das vacinas negociado pela Comissão Europeia, o plano de vacinação tem de ser ajustado, sobretudo para garantir a sua operacionalidade e celeridade, numa tarefa logística gigantesca que deve contar com o apoio e disponibilidade de todos os profissionais de saúde. Para cumprir o objetivo comum, temos de aumentar o número de vacinas administradas por semana. Temos de antecipar problemas, planear, envolver todos neste esforço. Não temos tempo nem espaço para descoordenação, para dúvidas, para incertezas na nossa ação. Estamos num momento de catástrofe. As hesitações, incoerências e falhas na articulação entre todos os agentes já nos custaram muitas vidas.

Por tudo isto, não deixaremos de fazer ouvir a nossa voz. De forma razoável, prudente, construtiva, mas firme. Pelo menos, enquanto os mais velhos e os profissionais de saúde não estiverem todos vacinados. Essa é a nossa luta. A voz dos que não têm voz e dos que, exaustos, se sentem desvalorizados e desconsiderados.

A mensagem que durante esta pandemia temos dado aos mais velhos é a de que já não contam. Aos nossos profissionais de saúde, os heróis premiados com medidas tardias, que os atiram para sofrimentos éticos incalculáveis, o sentimento de que são soldados numa guerra difícil de ganhar. Por isso perguntamos onde está a nossa identidade humanista, universalista, plasmada na Constituição da República?

Ninguém é infalível e todos erramos. Desde logo, quando não assumimos, madura e civicamente a nossa responsabilidade de conter este vírus, através das medidas que sabemos diminuírem o seu impacto. Governar em tempos de pandemia merece o nosso respeito e a nossa colaboração. Mas a pandemia deve ser uma oportunidade para olhar de frente para as nossas insuficiências, que não são exclusivas, mas muito profundas, na incapacidade de assumirmos de frente a necessidade que temos uns dos outros. E não é a branquear o que fazemos mal que vamos encontrar soluções diferentes. Esta não é uma questão ideológica, ou uma luta política. É uma questão civilizacional, onde a Ciência é o nosso maior aliado. E deve ser o triunfo do humanismo sobre o individualismo. A defesa intransigente dos mais vulneráveis, não nos discursos, mas nas escolhas.

A pandemia passará… Tudo passa. Mas se neste combate não formos capazes de recuar nas más decisões, nas falhas de coordenação e planeamento na estratégia de vacinação, enquanto ainda é tempo, a fatura a pagar será enorme na reconstrução do nosso futuro. Este é um momento decisivo da nossa História, também enquanto povo. Calar este desconforto, evitar este debate com a humildade que ele requer, cedendo à arrogância de quem ganha ou perde nesta discussão, não pode ser uma possibilidade, quando é no futuro que mora a nossa esperança. Se persistirmos nos erros, seremos um país que não é para velhos… Nem para profissionais de saúde! Quando muito, a avaliar pelas recentes decisões, será para titulares de cargos políticos…!