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Visão de uma interna sobre os Cuidados Paliativos Pediátricos

Autor: Mariana Adrião, Médica Interna de formação específica de Pediatria

 

Artigo de Opinião com base no Estágio de Cuidados Paliativos Pediátricos no Hospital Universitário Virgen del Rocío, de outubro a dezembro de 2019

 

Quando revelei que escolhi uma unidade de Cuidados Paliativos Pediátricos para completar a minha formação enquanto interna de Pediatria, ouvi vários comentários, de vários profissionais de saúde, revelando os desafios que os Cuidados Paliativos em Pediatria enfrentam.

“Eu não seria capaz”. O propósito dos Cuidados Paliativos é ajudar as famílias e os doentes, acalmar o sofrimento de quem lida com doenças ameaçadoras da vida. Ora, todos os profissionais de saúde lidam com estes doentes. Eu vejo este estágio como uma oportunidade de aprender a cuidar melhor, de apoiar, de compreender as suas necessidades. Vejo a oportunidade de ter formação em Cuidados Paliativos Pediátricos como uma necessidade crescente em Portugal.

“Agora fala-se mais nisso”. Não, não vejo como uma moda. É sim, um ajuste aos tempos atuais. Com a melhoria da medicina, não só aumentou a esperança média de vida de pessoas “saudáveis”, como aumentou também a sobrevida dos recém-nascidos e crianças com doenças que, até há poucos anos, eram fatais. Falo de doenças congénitas, genéticas ou metabólicas. Falo de sequelas de acidentes que sobrevivem com maior ou menor grau de incapacidade. Falo de tantas doenças que ajudamos a “manter”, mesmo quando ainda não há cura. Como consequência, temos um aumento significativo da prevalência de doentes pediátricos com necessidades complexas nos nossos hospitais. Porque não melhorarmos também os nossos cuidados médicos quando não é possível acrescentar anos de vida, mas sim vida aos anos que restam?

“És muito corajosa em querer investir nessa área”. Durante o meu percurso formativo, optei por estágios em áreas nas quais considerei a minha formação nos primeiros anos de internato insuficiente. Nessa linha de raciocínio, escolhi o estágio de Cuidados Paliativos Pediátricos. Escolhi não ignorar esta área de formação, mas sim integrá-la no meu internato de Pediatria.

“Felizmente gosto de uma área da Pediatria em que isso não importa”. Acredito que absolutamente todas as áreas da Pediatria estão relacionadas com os Cuidados Paliativos. Melhor dizendo, todas as áreas da Pediatria têm algum tipo de ligação a um doente crónico complexo. Vejamos o exemplo das paralisias cerebrais, doenças musculares e de alguns síndromes epiléticos na Neurologia Pediátrica, a fibrose quística na Pneumologia e na Gastrenterologia, as doenças hereditárias do metabolismo e os síndromes genéticos que interligam tantas áreas, nomeadamente a do Neurodesenvolvimento, as doenças oncológicas e as cardiopatias congénitas e tantos outros diagnósticos pré e perinatais que exigem tanto dos profissionais de saúde a trabalhar na Neonatologia.

No primeiro dia de estágio conheço as três médicas, a enfermeira, o psicólogo e a assistente social que integram a equipa de Cuidados Paliativos Pediátricos, assim como o seu funcionamento. E no último dia reconheço que foram três meses intensos. De aprendizagem, de emoções fortes, de partilha. Em que encontrei neste hospital uma realidade próxima daquela que poderá vir a ser a dos hospitais portugueses a curto prazo. Consegui compreender a organização e o trabalho de uma equipa de Cuidados Paliativos Pediátricos, com a sua atividade assistencial tão distinta das diferentes subespecialidades pediátricas.

Os doentes acompanhados em ambulatório vêm frequentemente ao hospital para ser avaliados em consulta de outras especialidades e a equipa da Unidade de Cuidados Paliativos Pediátricos ajusta os seus horários aos dos doentes, avaliando-os sempre de forma oportuna. A atividade assistencial prende-se com o apoio ao serviço de urgência e ao hospital de dia, sempre que solicitado. Existe um telemóvel referente à Unidade de Cuidados Paliativos, que está sempre na mão de um dos seus elementos das 8 às 15 horas dos dias de semana. Recebe incontáveis chamadas, quer de profissionais de saúde deste hospital ou de outro na área de Sevilha, quer dos cuidadores, seja para mencionar intercorrências, pedir consultas ou esclarecer dúvidas. Também o apoio domiciliário é uma parte muito importante da atividade assistencial. Várias vezes por semana, o carro cedido à unidade por uma fundação de beneficência social é conduzido até à moradia de algumas das famílias com uma criança ou adolescente com doença crónica complexa referenciada à unidade.

Pude participar ativamente durante o estágio e foi-me atribuída progressiva autonomia. Inicialmente limitava-me a acompanhar e assistir à atividade assistencial dos diferentes elementos, mas, com o passar dos dias, comecei a conhecer os doentes, as rotinas e as necessidades da unidade. Algumas semanas após ter aterrado em Sevilha, estava a falar com as famílias e com os doentes, a colher histórias clínicas e escrever diários clínicos. Fico muito feliz por sentir que os elementos da equipa confiaram em mim a avaliação dos “seus” doentes e capacitaram-me progressivamente, interessando-se que me tornasse uma médica mais completa a todos os níveis. Reforçaram-me muitos dos conhecimentos teóricos que já tinha, ajudaram-me a sedimentar tantos outros ensinamentos práticos e fizeram-me ter presente em mim a inevitabilidade da vida que nem sempre queremos encarar. Ensinaram-me a dar o melhor de mim, mas também a reconhecer que “todos nascemos, todos somos filhos de alguém e todos morremos”.

Além da vertente pedagógica, este foi um estágio de marcado carácter emocional. Emocionei-me, falei, ri e chorei com as famílias e com os meus colegas. Assisti a ambientes pesados, a conversas serenas, a risos e brincadeiras. Mesmo com carência de recursos e com dificuldades diárias, esta equipa ensinou-me e integrou-me de forma exemplar.

Agradeço muito esta oportunidade a todos eles, por me terem ajudado a viver esta experiência e a tirar o melhor do conhecimento que tinham para me oferecer. Recomendo a todos os que trabalham em Pediatria, independentemente da sua “área de interesse”, aprenderem um pouco sobre os Cuidados Paliativos e integrarem uma visão holística na sua prática diária. Porque uma criança com doença crónica, é mais do que um doente complexo. É, primeiro que tudo, uma criança. E como todas as crianças, tem direito a crescer saudável, a aceder a bons cuidados de saúde, a ser feliz e viver com qualidade.

O meu sincero agradecimento a todos os que me apoiaram e me permitiram usufruir desta experiência de enriquecimento profissional e pessoal.