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Uma USF em tempos de pandemia – a visão de duas internas

Autoras: Raquel Lobo Cardoso (esq.) e Diana Rodrigues Pacheco (dir.), Médicas Internas de Medicina Geral e Familiar na USF Horizonte (ULS de Matosinhos)

COVID-19. A doença de que mais ouvimos falar desde o início do ano de 2020, a doença que mudou rotinas individuais, familiares e profissionais, que fechou escolas e serviços, que levou muitos ao isolamento, medo e ansiedade. A doença que obrigou a uma reorganização impressionante das unidades de saúde, desde os cuidados de saúde primários aos hospitalares, como nunca vista até à atualidade.

Efetivamente, a COVID-19, classificada como pandemia a 11 de março de 2020, veio alterar a forma de trabalho das Unidades de Saúde Familiar (USF), provocando profundo impacto nos seus utentes e profissionais.

Na nossa USF não foi diferente. Criaram-se equipas de triagem à porta das unidades; alterou-se o circuito do utente de forma a proteger utentes e profissionais; formaram-se Áreas Dedicadas à COVID-19 (ADC); três unidades que trabalhavam habitualmente em contiguidade (2 USF e 1 Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados) reorganizaram-se para um trabalho em rotatividade, restrito ao espaço de apenas duas unidades; formaram-se novas equipas de trabalho; instituiu-se a consulta por telefone para manter a possível e igualmente importante vigilância dos utentes não-COVID; responderam-se a centenas de e-mails e telefonemas com dúvidas e receios dos utentes; surgiu o Trace COVID, inicialmente aceite com relutância, acabando, no entanto, por se revelar útil no seguimento dos suspeitos ou confirmados da infeção por SARS-CoV-2.

Acresce ainda, uma das mudanças mais difíceis, mas também uma das mais necessárias, o distanciamento. Tanto dos profissionais com as suas famílias, como entre profissionais e entre estes e os utentes. Também nos utentes sentimos este distanciamento como algo difícil de aceitar, num povo tão dado aos afetos e habituado à proximidade com o seu médico. Não raras vezes acabávamos a consulta telefónica com o utente a perguntar: “Mas então quando é que posso ter consulta com a minha médica no Centro de Saúde?”

Efetivamente, têm sido dois meses de um modelo de trabalho muito diferente daquele a que estávamos habituadas e para o qual não havia preparação.

Findo o estado de emergência e começando lenta e prudentemente a nossa atividade clínica a reinventar uma normalidade adaptada, surgem-nos várias questões quanto ao futuro para as quais não temos resposta, apenas uma opinião que vai sendo moldada à medida que a pandemia (e o mundo) evolui.

Consideramos, no entanto, ser esta uma oportunidade para mudar perspetivas e paradigmas aceites há décadas. Vejamos alguns exemplos.

  • Por que não desenvolver a teleconsulta nas USF (quando possível) para doentes crónicos, bem controlados, com acesso a medidores de tensão arterial no domicílio (por exemplo nos hipertensos, após os adequados ensinos), com avaliação de análises previamente realizadas (como no caso dos hipertensos e diabéticos), para verificação do uso correto dos dispositivos inalatórios e grau de controlo da sua doença (asma e doença pulmonar obstrutiva crónica)?
  • Por que não aproveitar o momento e incentivar a procura adequada da consulta aberta, tal como agora se tem verificado, tentando solidificar a verdadeira importância e os motivos para recorrer a este tipo consulta?
  • Por que não incentivar o uso da via eletrónica de forma correta (direcionando corretamente os pedidos para os diferentes contactos existentes: email do secretariado, enfermeiro ou médico de família, portal do utente, etc.)? Tal ação poderia facilitar a resolução da dúvida/problema do utente, sem sobrecarregar agendas (já de si sobrecarregadas) com assuntos de simples resolução, nem implicar absentismo laboral do utente que teria de se deslocar presencialmente à USF por esse motivo.

Durante este tempo, verificamos também mudanças positivas nos nossos utentes e familiares. Observamos um maior envolvimento familiar nos cuidados, de forma a proteger os mais velhos ou de maior risco, verificamos a existência de cuidadores informais até à data não identificados, vizinhos e amigos que se predispuseram a ajudar os que se encontravam em situação de maior vulnerabilidade.

Assim, sabemos que é possível, com a ajuda de todos, com um sentido de responsabilidade e interajuda transversal, prestar e manter os cuidados de saúde mais adequados. Tudo isto não implicaria uma menor nem pior vigilância dos nossos utentes, mas conduziria a cuidados mais eficientes, tão próximos como o habitual, mas diferentes, valorizando a eficiente gestão de tarefas e da agenda médico/utente. Este acompanhamento poderá ser ainda uma oportunidade de capacitar os doentes para os autocuidados sentindo-se, cada vez mais, parte integrante da equipa gestora da sua saúde.

A inovação e a mudança de paradigmas não deverão, no entanto, afetar o mais importante – a relação médico-doente, cerne da Medicina Geral e Familiar (MGF). Foi por esta relação tão especial que escolhemos MGF e é por ela e pelo seu significado terapêutico que tantos doentes nos procuram. Acreditamos que, se bem trabalhada, esta “realidade adaptada” poderá fortalecer esta relação.

Um outro aspeto, fulcral para nós sendo internas, é a nossa formação que, apesar de terem sido cancelados estágios e várias ações formativas, sentimos que não estagnou. Em função do nosso ano de internato, somos parte integrante da equipa, mantemos o trabalho com a lista de utentes da nossa orientadora de formação, os serviços mínimos, os contactos e registos na plataforma Trace COVID, o trabalho nas ADC e na consulta aberta não ADC, e ainda auxiliando a equipa de Saúde Pública no acompanhamento, vigilância e orientação dos indivíduos rastreados e em isolamento profilático.

Em última instância, não estamos todos em formação? A aprender diariamente como reagir, qual a melhor orientação a dar, como nos adaptar às novas formas de trabalho? A reconhecer a importância de bons e atualizados registos clínicos de forma a responder a dúvidas e problemas de utentes não pertencentes à nossa lista? A desenvolver a capacidade de adaptação constante, capacidade de superar obstáculos que surgem diariamente, capacidade de trabalhar em equipas diferentes e em constante rotatividade, capacidade de mesmo à distância saber escutar o utente e responder de forma clara às suas dúvidas?

Para finalizar, sentimos que tudo o que está a ser feito vai ficar na história. Dos profissionais, dos utentes, das USF e de todas as instituições do Serviço Nacional de Saúde. Apesar de todas as dificuldades, é um orgulho, sendo nós tão jovens médicas, podermos fazer parte desta grande equipa que lutou (e luta) em tempos de pandemia COVID-19.