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Uma pandemia no primeiro ano de internato

Autora: M. Francisca Amorim, médica interna de Medicina Geral e Familiar, USF Oceanos (ULS Matosinhos)

 

Se a relação médico-doente é o ponto fulcral da Medicina Geral e Familiar, também essa foi uma das questões que mais adaptações sofreu em tempos de pandemia. O principal motivo pelo qual escolhi esta especialidade, a proximidade com o utente, o contacto com as várias faixas etárias, o fácil contacto entre todos… mal eu podia imaginar que, pelo menos durante uns meses, estaria a escolher uma Medicina Geral e Familiar condicionada.

Quando o mundo e o nosso país foram afetados pelo novo coronavírus, por esta nova pandemia que está a marcar 2020, tudo mudou. A medicina que todos conhecíamos mudou. Foi alvo de uma reestruturação diária. E se veio expor algumas fragilidades das equipas e das instituições, veio também mostrar, mais uma vez, a força do Sistema Nacional de Saúde, a força de todos os profissionais que o constituem. A capacidade de adaptação e reinvenção, a solidariedade e proatividade da massa de internos.

Se não fomos o primeiro país a ser afetado e tivemos o exemplo de países próximos em que a situação se tornou complexa? É verdade. Se o risco desapareceu e podemos prescindir de todos os cuidados? Sem dúvida que não, esta é uma fase tão ou mais importante do que todas as fases pelas quais passamos até hoje. E, mais importante que tudo, as quais superamos. É crucial lembrar que todas as superações até agora, todos os números que não subiram, foram graças à compreensão de toda a população, mas também a todo o trabalho e empenho dos profissionais de saúde. Os que foram chamados a intervir em áreas que não eram as suas, aos que se voluntariaram para ajudar onde faziam mais falta, aos estudantes que, mesmo ainda não sendo considerados profissionais de saúde e tendo um exame pela frente, se juntaram a todos nós nesta luta pela vida, pela nossa e pela do nosso país.

A Medicina Geral e Familiar não foi uma exceção. As USF e UCSP, como as conhecemos, tiveram que se reorganizar. Os doentes tiveram que ser solidários, compreensivos e ajustar as suas expectativas. Foi-lhes exigido que tivessem um papel ainda mais ativo na sua saúde. Tiveram que perceber a necessidade de uma teleconsulta em vez de uma consulta presencial programada ou da possibilidade de serem vistos pelo médico escalado e não pelo seu médico de família. Os contatos telefónicos e o envio de prescrições por e-mail e mensagem tornaram-se ainda mais relevantes, tendo-se notado uma maior adesão por parte dos utentes. A empatia teve que ser transmitida por palavras através do telefone, em substituição do sorriso escondido pelas máscaras e viseiras. Os profissionais de saúde e utentes tiveram que superar o medo desta ameaça invisível e desconhecida e assumir as consultas e tratamentos indispensáveis. E o que é indispensável? O que consegue o doente gerir autonomamente e onde temos nós que intervir? Todo um conjunto de adaptações no sentido de manutenção dos cuidados de saúde e de proteção da saúde de todos, numa situação nunca antes vivida. Mas adaptações que nunca nos fizeram afastar do crucial: a saúde.

Eu e os meus colegas do 1º ano ainda nos estávamos a adaptar à realidade da nossa mais recente escolha, à realidade de um internato, de um novo local de trabalho, de novos colegas e orientadores de formação, quando fomos confrontados com uma outra nova realidade. Como interna do 1º ano e não me sendo reconhecida autonomia para desempenhar funções nas Áreas Dedicadas ao COVID-19 (ADC) na Comunidade e na consulta aberta não-ADC, fiquei encarregue do trabalho burocrático e das consultas não presencias. Deixei de ocupar o lugar ao lado da minha orientadora de formação, na consulta, em prol da máxima evicção de riscos e da segurança dos profissionais e utentes presentes. Deixei de ter contacto presencial com os utentes das várias faixas etárias, de poder avaliar a comunicação não-verbal dos doentes ou de realizar exame objetivo, pus o estetoscópio de lado… Não foi o processo, de todo, ou o início de internato mais fácil e entusiasmante que podia ter tido, que tinha imaginado ou planeado. Mas não me deixei acomodar, não o podia fazer! Assim como muitos dos restantes internos, fui à procura de outras formas de ajudar. Ao longo destes meses, auxiliei na notificação de casos de COVID-19 na plataforma SINAVE, à distância e presencialmente, nos Hospitais do Grande Porto. Voluntariei-me para apoiar a Unidade de Saúde Pública no rastreio e seguimento de contactos de casos positivos, na gestão dos isolamentos profiláticos e dos doentes com indicação para teste. Fui como uma ponte entre as listas de utentes e esta unidade ou mesmo parte ativa da equipa. Posteriormente e até hoje, desempenhei também o meu papel na vigilância destes doentes através da plataforma Trace COVID-19, juntamente com os restantes profissionais da minha unidade. Como internos, diversificamos. Fomos proactivos. Não nos sendo possível aprender da forma que era suposto e manter a habitual prática clínica, continuamos a aprender sobre outras vertentes da saúde, sob o olhar de outros profissionais ou pela voz dos utentes. E se a teleconsulta pode ser facilmente desvalorizada, pelos próprios utentes ou até mesmo por nós, ou se tudo isto pode ser desmotivador, o agradecimento do outro lado da linha telefónica lembra-nos como o garantirmos que está tudo bem pode fazer toda a diferença. O lembrarmo-nos deles e orientarmos algumas das suas questões médicas pode ser crucial. Porque, às vezes, precisamos de ouvir que o isolamento não foi simples para ninguém, que continua a haver linhas de apoio e profissionais a quem recorrer, que a ansiedade é natural e tudo isto pode ser assoberbante.

Para mim, foi uma forma de sentir que estava a dar o meu contributo na luta contra esta pandemia, a desempenhar o meu papel na preservação da saúde e do sistema que a gere. Se estava a fazer tudo aquilo a que me propus e com o que contava quando escolhi Medicina Geral e Familiar? Talvez não. Se gostava que esta nova realidade médica se tornasse permanente? De todo. Mas estava e estou a fazer o que é mais necessário, a ajudar onde posso ser mais útil. E ser médico também é isso. Também é ser solidário, também é unir a ciência com a humanidade, o profissionalismo com a empatia. Porque as linhas da frente na gestão desta pandemia formaram-se com diferentes traços, com diferentes grupos profissionais, com diversas formas de ajudar.

A COVID-19 até podia não ser expectável, mas veio certamente confrontar muitas expectativas, muitos planos futuros. Agora, espera-nos o desafio de reorganizar tudo de novo. De estudar as listas de utentes e gerir prioridades. De passar do medo para a ação. De recuperar o trabalho que não pôde ser cumprido. De ir, aos poucos, restabelecendo a medicina e a relação médico-doente como a conhecíamos.