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Um assalto e um ringue, ou a história de duas iniciativas em favor da Paz num Mundo perigoso e da devida Homenagem a um Homem de Bem

Autor: José Poças (Médico Internista e Infeciologista)

 

“A guerra é um massacre entre gente que não se conhece, para proveito de pessoas que se conhecem, mas que não se massacram” (Paul Valéry, filósofo e escritos francês, 1871-1945)

“A coragem é a primeira das qualidades humanas porque garante todas as outras” (Aristóteles, filósofo grego, 384 ac – 322 ac)

“A solidariedade é o sentimento que melhor expressa o respeito pela dignidade humana” (Franz Kafka, escritor checo, 1883-1924)

 

Hoje é dia de carnaval, época do ano na qual a única coisa que me habituei a apreciar, mas que fui percecionando que seria cada vez mais “perigosa” por questões que têm naturalmente a ver com a natural desconfiança em relação ao que as pessoas passaram a considerar como sendo o direito ao seu vital “espírito de segurança”, era organizar assaltos a casa de outras pessoas. Desde jovem adulto, até à idade em que os meus filhos atingiram o fim da adolescência, ano após ano, tudo era combinado, muitas vezes eivado de um saboroso improviso, no jantar da véspera que se realizava em minha casa, invariavelmente acompanhado por um dos meus maiores amigos de infância, o Artur Esteves (Jójó, para os amigos), que trazia também a sua família.
Vestíamo-nos com roupas velhas que guardávamos numa arca que provinha do espólio dos meus sogros e íamos noite dentro, cheios de alegria e de determinação em cumprir o plano traçado. Foram momentos verdadeiramente memoráveis e mágicos para o imaginário de todos, que empolgaram os seus participantes, em particular os mais novos, mas, igualmente, e, com frequência, os que eram surpreendidos por um grupo de “fantoches” que lhes invadiam de súbito a casa e que os faziam despertar da saborosa preguiça, como que estivessem a recuperar da lufa a lufa rotineira do seu dia a dia de trabalho.
Numa das ocasiões, os “assaltados” entusiasmaram-se tanto que se vestiram também de seguida, transmutando-se em fervorosos “assaltantes” da casa dos seus amigos, alguns dos quais que eu mal conhecia. Tudo isto fez com que a minha filha Joana me fale, volta e meia, em reeditarmos estas aventuras, agora na companhia dos meus netos, pois disso lhes fala amiúde com uma certa nostalgia de uma infância carregada de momentos de inesquecível felicidade que gostaria de repetir com a participação dos seus filhos. Ao que sempre respondo que, com muita pena de lhe não dar o seguimento que intimamente gostaria, considero que o Mundo de Hoje já não se compadece com tais “perigosas” iniciativas, e que as outras pessoas jamais iriam apreciar, podendo até vir a ter reações imprevistas de agressividade ou de angustiante desconforto, em vez do sentimento de libertadora irreverência que outrora tão bem experienciámos.

Este ano, as coisas são, contudo, muito diferentes como nunca imaginei que pudessem vir a ser. Na televisão ou nos ecrãs do computador e do telemóvel, em vez de cortejos de “cabeçudos” e “matrafonas” com “medonhas carantonhas”, só vejo e ouço notícias e filmes relativos ao “assalto” que um país está a levar a cabo ao dos seus “vizinhos”. Não com disfarces carnavalescos e num saudável espírito de causar uma agradável surpresa, mas, antes, com mortíferas armas em punho, destruindo tudo e todos os que se opuserem a tão tresloucada iniciativa. Até as crianças da idade dos meus netos não são poupadas.
Os jovens adultos, com idade que eu tinha quando iniciei as referidas irreverências que fizeram as delícias dos meus filhos, são voluntários para defenderem a sua nação e o seu povo do soez ataque de que são vítimas inocentes, perpetradas por “irmãos de sangue” desde os alvores da formação do país invasor, o que torna ainda mais inaceitável tal iniciativa. Os hospitais são destruídos sem qualquer escrúpulo e os meus colegas ucranianos já começaram a ter que ir tratar os seus doentes em bunkers improvisados. Por muitas razões que se possam invocar, NADA pode justificar tal hediondo crime.
Foi com esta sensação de me sentir impelido a ter de fazer algo, pois tudo o que assisti nestes últimos dias não me saía da cabeça, que, para além de ter já contribuído para diversos peditórios, senti que deveria fazer mais qualquer coisa. Escrever, certamente que sim. Mas não intuí que tal fosse suficiente. Mesmo o facto de, felizmente, nunca ter vivido num teatro de guerra, não torna menos sincera ou legítima esta pretensão. Por isso, liguei ontem para o telemóvel do meu colega Miguel Guimarães, Bastonário da Ordem dos Médicos, tendo exposto duas ideias que gostaria muito que se viessem a concretizar. A primeira, a de juntar os médicos ucranianos e russos que residissem e trabalhassem no nosso País. A condição de discípulos de Hipócrates, sobretudo em tempos de guerra, dever-se-ia sobrepor à de falante de qualquer idioma ou de pertencente a qualquer nacionalidade, credo religioso ou ideologia política. Fiquei a saber que o mesmo já o tinha decidido fazer relativamente aos primeiros, acolhendo bem a ideia de o fazer também em relação aos segundos. Sei que essas reuniões se irão realizar entre hoje e amanhã, e, o texto alusivo que li no site oficial da Ordem dos Médicos, escrito pelo próprio, não poderia ter sido mais chamativo e apropriado.
Mas, propus algo mais que gostaria muito de ver realizado a muito curto prazo, e, que, estou sinceramente convicto, se houver genuína vontade, poderá sê-lo, tendo mesmo um significado simbólico muito grande, sobretudo se se generalizasse por todo o Mundo. Organizar uma vigília num local profundamente simbólico do nosso País, sob a égide da Ordem dos Médicos, que reunisse os referidos membros, tal como os de todas outras nacionalidades, para além de portugueses, que tivesse ainda a participação de autoridades religiosas, de entidades políticas nacionais e de representantes diplomáticos de outros países que o pretendessem fazer, para que, em uníssono, deixássemos uma mensagem de explícita repulsa por esta guerra sem ponta de razão ou de legitimidade (tal como por Todas as que grassam em Todo o Mundo), bem como de apoio e solidariedade ao povo e à nação ucraniana, exigindo o respeito pelas decisões que autonomamente esta pretender fazer acerca do seu próprio futuro, no reconhecimento devido à extraordinária serenidade e coragem do Presidente Volodymyr Zelensky.
Quando, por qualquer circunstância, antes destes recentes acontecimentos, a conversa acabava por versar acerca de temática semelhante, ou, quando via, ouvia ou lia notícias alusivas, já disse muitas vezes a diversos companheiros de cavaqueira, eu, que jamais entrei numa luta corpo-a-corpo com alguém, que, na verdade, sou um grande defensor dos duelos que se faziam antigamente para defender a honra de alguém que a achasse injustamente em perigo. Não com armas, sejam elas espadas ou pistolas, mas  antes com o punho de cada um dos oponentes. Ao que acabo invariavelmente por concluir que, se um Presidente de uma País quisesse declarar guerra a outro, deveria antes fazê-lo pessoalmente, através de um desafio dirigido ao seu congénere, e, nunca, envolvendo nisso, nem os seus exércitos, nem os respetivos povos. Estes deveriam, assim, ficar antes sentados à volta do ringue e o prejuízo que tivesse de haver, seria antes para os participantes diretos no duelo, e, nunca, para mais ninguém. Se tal se pudesse aplicar ao atual conflito, seria uma luta de um “Golias” contra um “David”. E, então, talvez que a assistência, ciente da injustiça da notória diferença das capacidades intrínsecas de cada um, se levantasse num coletivo clamor a apoiar o “lado bom” do conflito, e, desse modo, “David” voltasse a bater “Golias”, como reza a lenda bíblica.
A eventual presença conjunta dos nossos colegas ucranianos e russos nessa cerimónia que espero ainda ver concretizada, teria um significado idêntico, e, se fosse generalizada por todas as nações deste Mundo, talvez ecoasse no coração e na consciência do Presidente Putin! Podia ser que ele chegasse à conclusão que, sendo o líder político do país com o território mais vasto deste nosso planeta, faria muito melhor em se preocupar que a sua consciência e sentido de Humanidade fosse proporcional a tamanha grandeza, em vez de continuar a mandar os soldados do seu poderoso exército perpetrarem este verdadeiro genocídio, quiçá, a contragosto. Caso contrário, ficará irremediavelmente registado nos manuais de História e na nossa Memória coletiva, como o autor moral do mais hediondo crime coletivo do século XXI. Quero acreditar que tal pode ainda ser evitado. Se agirmos a tempo…

Nota Final: Dedico este texto aos meus filhos Joana e João, tal como aos meus netos Simão e Alice, e, através deles, a todas as crianças ucranianas e russas cujos seus pais estão a morrer neste brutal conflito bélico, com votos que, um dia, possam viver num Mundo onde a alegria dos genuínos assaltos carnavalescos os possa voltar a encher de alegria.

Setúbal, 2022/03/01