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TraceCovid: a nova consulta do médico de família, a nova responsabilidade, a nova oportunidade

Autor: José Augusto Santos, Médico Interno no 4º ano de MGF na USF Navegantes (ACeS Póvoa de Varzim | Vila do Conde)

 

O decorrente ano de 2020 ficará marcado na nossa memória pela evolução da pandemia pelo vírus SARS-CoV-2. A vivência de uma pandemia constitui um novo e maior desafio para a sociedade, entidades governamentais e de responsabilidade civil, assim como para a comunidade científica global, e mais especificamente, para a comunidade médica. Por conseguinte também os serviços de saúde tiveram de se reestruturar, transformar e reagir!

No âmbito dos cuidados de saúde primários, os Médicos de Família adquiriram uma importante arma de televigilância, a plataforma clínica denominada TraceCovid, que permite gerir os utentes infetados, assim como os utentes considerados casos suspeitos e expostos. Numa primeira análise é percetível a importância desta ferramenta através da qual foi possível que muitos profissionais orientassem, diariamente, milhares de doentes por todo o país de uma forma organizada. Foi possível, por conseguinte, seguir doentes infetados até à sua cura, aferindo as normas de isolamento e antecipando situações de alarme; referenciar, se a situação clínica justificasse; e orientar os casos não confirmados de acordo com as boas práticas. Adicionalmente, ao criar um sistema de teleconsulta diária gerou-se, de forma astuta, uma fonte de apoio psicológico inigualável para o doente, ajudando-o num momento peculiar e frágil do seu estado de saúde, onde é invariavelmente isolado do seu habitual apoio social e familiar. Um simples contacto telefónico transformado num momento de esperança e carinho, talvez o mais próximo de um abraço nestes dias que se vivem. Por outro lado, para o próprio médico de família, vislumbra-se também nesta teleconsulta uma rara e valiosa oportunidade de aproximação emocional e fortalecimento da relação de confiança entre médico e doente. Não podemos deixar de notar que esta aproximação é recíproca e bilateral. Não indiferente às frustrações e ansiedades do doente, o médico acaba por vivê-las também como suas.

Esta plataforma tornou ainda possível aproximar duas retas muito próximas mas, regra geral, apenas paralelas entre si – a Medicina Geral e Familiar e a Saúde Pública, criando agora intersecção entre ambas numa relação de “casamento” necessária, estrategicamente inteligente e profissional, com o objetivo comum de erradicar a ameaça que é esta pandemia.

Contudo, convém relembrar que cada contacto, mesmo que telefónico, continua a ser um ato médico, um ato provido de todo o valor e legitimidade e repleto de toda a ética e deontologia que qualquer outra consulta acarreta. Por conseguinte, este deve ser valorizado, este deve ser reconhecido! E é certo que todos nos lembramos das palmas emocionadas nas varandas, que são e serão sempre bem-vindas, e dos atos de simbolismo mais “duvidoso”, como a final da Champions League em território nacional, que também agradecemos (um muito obrigado!). No entanto, é o reconhecimento do trabalho prestado e melhores e mais dignas condições de trabalho, o objetivo pelo qual todas as classes profissionais ambicionam.

A opinião pública desconhece que em plena pandemia, profissionais tiveram que, invariavelmente, usar os seus próprios telemóveis e respetivos números pessoais a fim de prosseguir com a sua digna missão de acompanhar diariamente os seus utentes. Missão essa que levaram a cabo honrosamente e muito graças ao altruísmo e boa fé das diversas operadoras, que amavelmente disponibilizaram “minutos” extra para esta tarefa.

É também do desconhecimento geral, a complexidade inerente a este “simples telefonema” que passou a fazer parte da habitual jornada de trabalho, já de si improvisada e sobrecarregada, a par de todo o processo de constante atualização de normas, criação de algoritmos de decisão clínica e elaboração de planos de ação, que a pandemia assim exigiu. A verdade é que não houve, e continua a não haver, uma estrada traçada sobre como proceder, mas sim um caminho que se foi construindo à medida do presente, sem historial prévio e sem previsão do futuro.

Mas não foi só a rotina profissional que de um dia para o outro teve de ser alterada. Além dos 5 dias da semana, o médico de família sentiu-se no dever de todos os fins de semana, sem exceção, tirar horas do seu tempo pessoal para contactar e vigiar os doentes. Horas essas que não são devidamente valorizadas e ressarcidas pelas suas chefias.

Seis meses estão já passados! Por diversas vezes, frustrantemente, todo este esforço pareceu inútil e não valorizado. É indescritível a desmotivação momentânea sentida, em pleno domingo de verão, onde as praias estão cheias, os shoppings ao rubro de clientes e um “festival que já não é festival“, prosseguiu em deslumbre imaculado, enquanto muitos médicos eram privados do seu pouco convívio familiar para executar altruisticamente 30, 40 ou até mesmo mais de 50 televigilâncias a utentes que, na sua razão e lógica, recebiam o médico com intolerância e até algum desrespeito, questionando a competência e testando a paciência, não aceitando as indicações de isolamento ou até mesmo a situação atual, com argumentos irrefutáveis como “tenho a certeza que isto não é COVID!”, ou “Eu quero um teste cura!”.

Mas é esta A nossa Luta! Prosseguimos sem nunca desistir! Um louvor aos nossos mentores! Aos médicos mais experientes que, com mais de 6 décadas de vida e mais de 3 décadas de trabalho, foram confrontados com esta nova realidade tecnológica e “distante” da teleconsulta, a realidade das constantes atualizações de normas, regras e planos de ação, a necessidade da adaptação fast-track a plataformas como TraceCovid ou Sinave, e que não desistiram e, uma vez mais, se adaptaram sem pedir louvor extra. E não esqueçamos os novos “cliques” com que fomos brindados nas atualizações da PEM e prescrição de MCDTs, claramente desenhados para facilitar o clínico. Um bem-haja! Estamos aqui para aguentar tudo o que vier! Desprezado espírito altruísta e de sacrifício que, ao contrário do que por vezes ventila na opinião pública, mostram descaradamente a nossa vocação nobre e única.

Recebo Champions, recebo palmas, mas guardo como os momentos mais embutidos de satisfação e prazer aqueles que nós, médicos de família, experienciamos ao comunicar a cura ao doente que seguimos e acompanhamos diariamente durante semanas (mesmo aos fins de semana e feriados!).

Esperando que os nossos líderes tenham sempre presente a justa hierarquia de necessidades do seu povo, continuaremos o nosso caminho. Mas um exército sem soldados não ganha guerras.