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TRACE COVID®: inteligência artificial ao nível dos Cuidados de Saúde Primários?

Autor: Filipe Cerca, médico interno de Medicina Geral e Familiar, USF Valbom (ACeS Gondomar)

 

Os sistemas informáticos de apoio à prática clínica são uma realidade bem estabelecida no Sistema Nacional de Saúde sendo inegável a sua utilidade como ferramenta para melhorar a eficácia dos cuidados de saúde. Estes sistemas têm repercussão, entre outros, no apoio ao processo de tomada de decisão clínica, na integração de cuidados ao utente ou na gestão de recursos humanos.

Ao nível dos cuidados de saúde primários são vários os programas informáticos que têm sido disponibilizados de forma a responder às múltiplas tarefas, clínicas e não clínicas, que caracterizam a atividade de um médico de família. Não sendo possível enumerar todos, destaco o Sclinico® ou o PEM® pela sua função central na atividade clínica. Constatamos a sua importância quando, por motivo de atualização ou outros, estes ficam temporariamente indisponíveis limitando de forma relevante a nossa prática clínica, seja em termos de agilização de processos ou segurança para o utente.

Utilizo o exemplo do Sclinico® para, na perspetiva de utilizador, mostrar o formato de interface bidirecional em que este programa se baseia. Ou seja, por um lado o médico utiliza o programa para introduzir/registar a informação clínica do utente. Por outro lado, utiliza o programa para aceder a informação do utente, organizada e acessível de forma rápida e intuitiva, para o apoiar na tomada de decisão clínica. Apesar deste fluxo de informação bidirecional, não existe propriamente uma interação entre utilizador e programa informático: genericamente, em nenhum momento, o Sclinico® integra/analisa a informação do utente para sugerir um determinado procedimento ao médico. Não existe, portanto, interferência de uma terceira parte no processo de decisão clínica, sendo este da única responsabilidade do médico.

Embora distante da realidade prática dos cuidados de saúde primários, o conceito de inteligência artificial em saúde existe sendo uma área que está em contínua expansão (1). Simplificadamente, propõe-se que a geração contínua de informação clínica (o conceito de “Big data”) possa ser analisada/integrada de forma a estabelecer padrões/modelos que em última instância sejam utilizados para, de uma forma automatizada, emitir um parecer sobre uma determinada situação clínica (2). Ou seja, ao contrário do que ocorre atualmente em que o médico utiliza o Sclínico® para fazer uma integração dos dados e decidir o melhor plano terapêutico para o utente, num modelo apoiado por inteligência artificial seria eventualmente a o programa informático a sugerir um plano de acordo com a informação introduzida pelo médico tendo como base as características do utente.

Esta alteração no fluxo de informação entre médico e programa informático, ainda que no plano teórico, faz-me chegar ao TRACE COVID®, programa desenvolvido durante a pandemia pelo SARS-Cov-2 (COVID-19) com o objetivo de estabelecer um protocolo de vigilância clínica aos utentes com suspeita ou infeção confirmada por COVID-19. Além da vigilância clínica, o programa contempla uma outra função de particular importância que compreende classificar o estado do utente permitindo, por exemplo, saber em tempo real quantos utentes se encontram infetados ou curados. Algumas particularidades deste programa e o contexto em que foi desenvolvido podiam antever algumas dificuldades de implementação: 1) o facto de ter sido desenvolvido num curto espaço de tempo com necessidade de otimização subsequente à implementação; 2) a utilização por grupo heterogéneo de profissionais de saúde (Médicos de Medicina Geral e Familiar, Médicos de Saúde Pública, Enfermeiros) que lidaram com um problema novo; 3) o número muito elevado e crescente de utentes a vigiar.

Na perspetiva de utilizador, e como tal com acesso à base de dados do meu ACeS, constato que a nível local o TRACE COVID® se traduziu numa ferramenta útil com elevada adesão pelos profissionais de saúde, não obstante algumas dificuldades iniciais na otimização da utilização do programa. Se por um lado a gestão de recursos humanos a nível do ACeS e o esforço de adaptação dos profissionais a um novo contexto de trabalho contribuiu para melhorar os índices de vigilância no TRACE COVID®, por outro lado considero existir uma característica-chave do programa que se traduziu no sucesso da sua utilização: a interação entre o TRACE COVID® e o utilizador (Médico/Enfermeiro). Traduzindo este conceito de interação, refiro-me ao facto do programa definir diariamente tarefas para o profissional de saúde realizar. De uma forma ainda mais refinada, o TRACE COVID® mostrou capacidade para monitorizar o registo do profissional de saúde, nomeadamente ao nível da codificação do estado do utente, e criar um alerta/tarefa de aviso caso detetasse alguma incongruência no registo. Do meu ponto de vista, tivemos pela primeira vez um programa informático a orientar procedimentos com o objetivo de melhorar a vigilância clínica dos utentes e gerar informação em tempo real o mais fidedigna possível. Quase que fica a dúvida se o profissional de saúde utilizou o TRACE COVID® como ferramenta de trabalho para a vigilância dos utentes ou se o TRACE COVID utilizou os profissionais de saúde como recurso para gerar a informação que pretendia (determinar a evolução do número de casos em tempo real). Provavelmente, e bem, ocorreu um misto de ambas as situações sendo que, o mais importante, foi mesmo a mais-valia e segurança que trouxe para o utente em vigilância e, em consequência de lidar com a gestão de um problema de saúde pública, para a sociedade.

Associar o conceito de inteligência artificial à funcionalidade/interatividade que o TRACE COVID® apresentou é ainda prematuro, tendo em conta a dimensão e complexidade dos modelos computorizados de predição de doença que ambicionam personalizar os sistemas de apoio à decisão clínica. No entanto, considero que o TRACE COVID® foi inovador ao nível dos cuidados de saúde primários trilhando caminho num processo que se afigura demorado mas que tendencialmente irá otimizar o papel dos programas informáticos na gestão da saúde dos utentes. Com a mais-valia de ser totalmente made in Portugal.

 

Bibliografia:

1 – Sutton et al. An overview of clinical decision support systems: benefits, risks, and strategies for success. Digital Medicine (2020) 3:17

2 – Agrawal et al. Big data in digital healthcare: lessons learnt and recommendations for general practice. Heredity (2020) 124: 525–534