+351 21 151 71 00

Riscos Psicossociais e Teletrabalho

Autora:

Rita Marques da Costa

Interna de Formação Específica de Medicina Geral e Familiar, 4º ano

USF Aníbal Cunha, ACeS Porto Ocidental

 

 

Ao longo das últimas décadas e desde a introdução plena das novas tecnologias no dia-a-dia da sociedade atual, foi sendo implementado o conceito de teletrabalho. Embora sem grande tradição em Portugal até ao início da pandemia mundial por Covid-19, este método de trabalho foi promovido em vários países como uma das políticas de gestão de trânsito automóvel excessivo, minimizando as viagens relacionadas com o trabalho e também os custos às mesmas associados1,2,3. Com o surgimento da pandemia mundial pelo novo coronavírus, este método de trabalho passou a representar uma realidade para grande parta da população, como solução para minimizar o contacto interpessoal e os possíveis contágios. Nessa sequência, múltiplas investigações foram desencadeadas no sentido de compreender quais as vantagens e desvantagens deste método de trabalho. Com o passar do tempo múltiplas questões se afloraram pertinentes – será que o teletrabalho veio para ficar? Se sim, que consequências a curto e a longo prazo nos trabalhadores? De que cuidados preventivos adicionais carecem estes trabalhadores?

Como reconhecidas vantagens do teletrabalho, a somar às já referidas que se prendem com a redução do tráfego automóvel (diminuição do tempo no trânsito, minimização de custos, redução da poluição ambiental, menor desgaste automóvel), destaca-se a maior autonomia do trabalhador, a melhor gestão entre a vida pessoal e profissional e o alívio das restrições temporais e espaciais no dia-a-dia (flexibilização de horários e tarefas) 4,5,6.

Antes de abordar as possíveis desvantagens e os riscos psicossociais inerentes ao teletrabalho, importa entender o trabalho como um fenómeno psicossocial. Este afigura-se como uma componente central da vida de cada indivíduo, contribuindo para definir a sua identidade. Tendo surgido inicialmente como mecanismo de sustento para as famílias, hoje constitui muito mais que isso na pirâmide individual de cada um. Foco de motivações diárias, objeto de satisfação e realização pessoal, o trabalho surge como promotor de novas relações interpessoais e de alteração de projetos de vida, motivados por novas ambições, progressões na carreira, novas experiências, melhores salários. Muito mais do que um sustento, hoje a vida profissional emaranha-se na vida pessoal e ambas se interligam e se alteram profundamente. Desta reflexão podemos subentender que qualquer alteração num componente desta interligação irá necessariamente repercutir-se na outra.

Para além das vantagens referidas, o teletrabalho trouxe então várias desvantagens a nível psicossocial que constituem riscos para os indivíduos, entidades empregadoras e sociedade.

Uma das desvantagens mais prementes é a perda das relações interpessoais presenciais. Todos os contactos passaram a estabelecer-se com recurso ao digital e às novas tecnologias. A comunicação torna-se mais empobrecida, com perda do não-verbal, da espontaneidade comunicativa, do entendimento e da empatia, das oportunidades de conversa espontâneas nas pausas do trabalho. A rede de contactos torna-se também menos alargada. No contexto laboral, há redução da interação no trabalho coletivo, tão relevante no contexto das organizações para a coesão inter-pares e para o surgimento de novas ideias. Estes fatores, sobretudo no contexto pandémico de restrições à circulação, levaram ao isolamento social de muitos trabalhadores, que se vem perpetuando no decorrer da pandemia. O isolamento social prolongado tem efeitos nefastos na saúde física e mental e está associado a um aumento da mortalidade7,8. Contribui negativamente para uma pior performance cognitiva, para um declínio cognitivo mais acelerado, pior funcionamento executivo, aumento da negatividade e sintomatologia depressiva, aumento da ansiedade e do medo com sensibilidade exacerbada a ameaças sociais. Estas alterações neuro-psíquicas, cujas bases biológicas têm sido amplamente estudadas9, têm impacto negativo nas emoções, tomadas de decisão, interações pessoais e associam-se a maior morbilidade e pior qualidade de vida8.

Para além do isolamento social, o teletrabalho pode constituir um fator adicional de stress. O revés da flexibilidade de horários é o facto de o trabalhador estar permanentemente disponível, perdendo-se o conceito de “hora de saída” e, muitas vezes, de pausa semanal. Este facto associou-se com frequência a queixas de burnout durante a pandemia. De acordo com um estudo realizado por alunos da Universidade Nova de Lisboa, apresentado em Diário de Notícias, 64% dos profissionais que se encontram em teletrabalho acusam o aumento nos níveis de stress em período laboral vs. 50% dos trabalhadores que não se encontram em teletrabalho10.

Alguns dos fatores que contribuem para o burnout associado a este método de trabalho prendem-se ainda com o período de confinamento vivido simultaneamente (com restrições a outras atividades no exterior), com algumas dificuldades de adaptação (sobretudo para quem nunca tinha trabalhado a partir de casa), com a telescola simultânea, a falta de espaço, as dificuldades económicas que se instalaram em alguns agregados e o medo e as incertezas relativamente ao futuro. O teletrabalho remeteu ainda o descanso para segundo plano, com emails e solicitações a qualquer altura do dia. A falta de rotinas estabelecidas necessariamente por um trabalho no exterior, associada ao sedentarismo promovido pelo trabalho em casa, são também promotores de sintomatologia depressiva e ansiosa11.

A multiplicidade de novas ferramentas informáticas que passaram a fazer parte do dia-a-dia de muitos teletrabalhadores constituiu um fator adicional de stress. A quantidade de novas informações e de novas tarefas a executar em plataformas muitas vezes previamente desconhecidas trouxe dificuldades adicionais de adaptação e constituiu motivo de frustração no desempenho das atividades. Associado ao maior tempo de permanência em casa, o trabalhador tem de suportar também novos encargos financeiros como sejam o aumento dos gastos com eletricidade, água, internet, consumíveis, entre outros. Para alguns agregados familiares, sobretudo no contexto pandémico, este poderá ser também um fator stressor.

As características de cada trabalhador, que constituem os seus recursos pessoais para lidar com situações de stress, também definem a sua vulnerabilidade aos riscos. Perante um aumento das exigências na atividade laboral, o capital psicológico de cada indivíduo (sentimentos de auto-eficácia, auto-confiança, otimismo, resiliência e esperança) é determinante na resposta ao stress e no possível dano psicossocial causado pelas mudanças referidas no contexto do teletrabalho12. Outra das questões que não pode ser negligenciada no que respeita ao teletrabalho é a entrada do poder patronal na casa do trabalhador, na sua intimidade. Quanto maior esse poder, maior a invasão dessa autoridade na vida do trabalhador e daqueles que com ele convivem. Para além disso, os conflitos, as pressões, as contradições que o trabalhador antes vivia em espaço laboral determinado, passa agora a vivê-las em casa, à vista dos seus familiares que noutra circunstância estariam fora desse contexto. Deste modo, os riscos psicossociais aplicam-se não só ao trabalhador como ser individual mas também aos seus co-habitantes. A vivência da realidade laboral do indivíduo, preocupações, reuniões, acordos, conflitos laborais, passam a ser do domínio familiar e passam a tomar conta das conversas diárias, influenciando o ambiente familiar e o desenvolvimento pessoal dos que o partilham.

Todos os riscos supracitados podem levar a múltiplos danos a curto prazo nos trabalhadores que podem afetar as várias dimensões da sua vida: a nível profissional, a resposta de stress sustentada poderá levar a alterações da memória, dificuldades de concentração, dificuldades na tomada de decisões e aumento de erros no processamento da informação. Fisicamente, o trabalhador pode experienciar uma baixa de imunidade, aumento da tensão muscular e da pressão arterial, alterações do sono, cansaço fácil, agitação motora ou tiques nervosos, perda ou aumento excessivos do apetite, entre outros. A longo prazo, podem ainda surgir várias patologias relacionadas com o stress, tais como patologia cardíaca13. Psicologicamente, uma resposta de stress sustentada pode traduzir-se em labilidade emocional, irritabilidade, diminuição do desejo sexual, mau humor, persistência de pensamentos irracionais e negativos, tristeza, melancolia, angústia e isolamento.

Perante o descrito, o médico, no contacto com este trabalhador, seja o Médico de Família, o Médico do Trabalho ou outro, tem nesta fase um papel preponderante no estabelecimento de medidas preventivas, em identificar situações de maior risco e no desenvolvimento e promoção de intervenções eficazes.

Após identificação dos riscos existem múltiplas estratégias passíveis de serem implementadas no sentido de prevenir os danos nos trabalhadores. A promoção do desenvolvimento de estratégias de coping funcionais é determinante na gestão de um evento stressor. O médico pode incentivar algumas medidas comportamentais tais como: a manutenção de rotinas – vestir-se como se fosse para o trabalho ou substituir a deslocação para o trabalho por um passeio no parque ou na área de residência e o cumprimento dos horários (esta medida pode muitas vezes passar pela implementação de medidas correctivas perante a entidade empregadora no sentido de evitar solicitações ou tarefas fora do horário laboral). O teletrabalho deve ser realizado num espaço físico que o trabalhador designe para o efeito, para que haja separação física entre trabalho e lazer dentro da habitação. Durante o período laboral o teletrabalhador deve criar pausas, preferencialmente pausas ativas, com pequenos períodos de alongamentos ou outros exercícios. Após a atividade laboral, outras medidas comportamentais podem prevenir o burnout associado, por exemplo, a realização de meditação e o estabelecimento de horários para a família ou para outras atividades sociais, ou para deportos ou hobbies. Os horários de sono também não devem ser negligenciados e o trabalhador deve tentar dormir entre 7 a 9 horas diárias para que o descanso seja completo. Associadamente, não deve trabalhar nas últimas 2 a 3 horas antes de dormir – não só aumenta o nível de stress pela gestão de questões laborais que podem prejudicar a indução do sono, como a exposição a écrans antes de adormecer diminui a produção de melatonina e perturba os ritmos circadianos14.

A prática de exercício físico deve também ser promovida no contexto da prevenção de danos psicossociais. Para além de contrariar os efeitos nefastos do sedentarismo associados ao teletrabalho, promove a libertação de serotonina e endorfinas, associadas ao bem-estar, que ajudam a combater a depressão e a ansiedade15. A alimentação saudável, a criação de hábitos de leitura e o estabelecimento de metas e desafios não relacionados com o trabalho também contribuem para a redução de stress e sensação de bem-estar.

O médico também deverá estar atento e desencorajar hábitos nocivos, muitas vezes utilizados em situações desencadeadoras de stress, como é o caso do consumo de álcool, de tabaco ou outras drogas ou o recurso a comportamentos de agressividade. A negação do problema e da situação de burnout do trabalhador, com recurso à procrastinação e ao adiamento da resolução do mesmo, é um fator de alarme que pode ser reportada pelo médico, colegas de trabalho ou familiares e que consiste numa reação-mal adaptativa e numa estratégia de coping disfuncional.

Para além de todas estas medidas, na própria organização do trabalho, o trabalhador pode arranjar estratégias minimizadoras de stress, designadamente desenvolvendo agenda e planos de ação realistas para o dia corrente, priorizando, através do adiamento das tarefas concorrentes, e pedindo ajuda sempre que necessário.

Para além do estabelecimento de medidas preventivas, o médico tem um papel de diagnóstico precoce dos danos já estabelecidos. Para além das medidas comportamentais supracitadas que podem evitar o agravamento, cabe ao profissional de saúde identificar os casos que carecem de farmacoterapia ou outros tratamentos dirigidos à psicopatologia em questão.

Os danos psicossociais causados pelo teletrabalho podem traduzir-se em consequências organizacionais com custos diretos e indirectos para a entidade empregadora. Os custos diretos podem estar associados ao desempenho no trabalho – e resultam essencialmente da diminuição da produtividade dos trabalhadores quando em burnout – ou serem decorrentes da diminuição da participação laboral (com atrasos, dias de absentismo, greves) e do recurso mais frequente aos cuidados de saúde. Os custos indiretos estão relacionados com as eventuais falhas de comunicação entre elementos da equipa, a alguns erros técnicos ou na tomada de decisões, a conflitos laborais e de oportunidades de negócio perdidas. A insatisfação e baixa motivação dos trabalhadores é outro dos fatores que pode torná-los menos ambiciosos e condicionar o seu investimento nos projectos laborais, o que afeta toda a organização estrutural. O risco de acidentes de trabalho e custos associados à saúde também é superior num trabalhador em burnout.

Em resumo, o teletrabalho afigura-se hoje em dia, sobretudo neste tempo de pandemia, como uma alternativa ao trabalho presencial que oferece inúmeras vantagens. Permite ao trabalhador trabalhar a partir de qualquer local, a gestão pessoal do horário e das tarefas e torna as cidades menos caóticas e menos poluídas. Veio certamente para ficar em muitos locais de trabalho, pelo menos a tempo parcial, pela flexibilidade e vantagens que oferece. No entanto, e tal como foi exposto, traz inúmeros riscos associados que não devem ser descurados sob pena de danos potencialmente irreversíveis ao indivíduo trabalhador e sociedade. Há que saber identificá-los, garantir medidas preventivas e preconizar uma intervenção precoce sobre os já instalados. A passagem súbita de muitos trabalhadores para este regime de trabalho, com o surgimento do estado de emergência, pode ter sido a causa para alguns danos psicossociais que se instalaram, em virtude da inexistência de uma fase de preparação prévia. Um ano e meio volvido, muito se investigou, muitos testemunhos foram dados sobre o tema e muitas soluções foram preconizadas no sentido de resolver os problemas trazidos por este novo método de trabalho.

“Quando pensamos saber todas as respostas, a vida vem e muda todas as perguntas” (autor desconhecido). Que estas questões trazidas por esta nova forma de trabalhar se afigurem como uma oportunidade de refletir uma vez mais sobre o indivíduo trabalhador como pedra basilar da sociedade e, como tal, na importância do cuidado com a sua saúde física e mental.

 

Referências bibliográficas:

  1. Asgari H., Jin X. An evaluation of part-day telecommute impacts on work trip departure times. Travel Behav. Soc. 2018;12:84–92.
  2. Lachapelle U., Tanguay G.A., Neumark-Gaudet L. Telecommuting and sustainable travel: Reduction of overall travel time, increases in non-motorised travel and congestion relief? Urban Stud. 2017;55(10):2226–2244.
  3. Shabanpour R., Golshani N., Tayarani M., Auld J., Mohammadian A. Analysis of telecommuting behavior and impacts on travel demand and the environment.  Res. Part D: Transp. Environ. 2018;62:563–576.
  4. Baruch Y. Teleworking: benefits and pitfalls as perceived by professionals and managers. New Tech. Work Employ. 2000;15(1):34–49.
  5. Pérez M.P., Sánchez A., de Luis Carnicer M. Benefits and barriers of telework: perception differences of human resources managers according to company’s operations strategy. 2002;22(12):775–783.
  6. Pendyala R.M., Goulias K.G., Kitamura R. Impact of telecommuting on spatial and temporal patterns of household travel. 1991;18(4):383–409.
  7. Umberson D., and Montez, J.K. (2010). Social relationships and health: a flashpoint for health policy. J Health Soc. Behav. 51 (Suppl), S54-S66.
  8. Cacioppo, J.T., and Hawkley, L.C. (2009). Perceived social isolation and cognition. Trends Cogn. Sci. Volume 13, Issue 10, October 2009, Pages 447-454
  9. Zelikowsky et al., 2018. The Neuropeptide Tac2 Controls a Distributed Brain State Induced by Chronic Social Isolation StressCell 173, 1265–1279.
  10. In Diário de Notícias, edição digital de 18 de Junho de 2021, consultada em https://www.dn.pt/dinheiro/ a 26/06/2021.
  11. Hou, W., et al. Regularizing daily routines for mental health during and after the COVID-19 pandemic. J Glob Health. 2020 Dec; 10(2): 020315.
  12. Xanthopoulou, D., Bakker, A. B., Demerouti, E., & Schaufeli, W. B. 2007a. The Role of Personal Resources in the Job Demands-Resources Model. International Journal of Stress Management, 14(2): 121–141.
  13. Karasek RA, Baker D, Maxer F, Ahlbom A & Theörell T 1981. Job decision latitude, job demands, and cardiovascular disease: a prospective study of Swedish men. American Journal of Public Health 71(7):694- 705.
  14. Tosini, G. et al. Effects of blue light on the circadian system and eye physiology. Mol Vis. 2016; 22: 61–72.
  15. Harber, V et Sutton, J. Endorphins and exercise. Sports Med Mar-Apr 1984;1(2):154-71.