+351 21 151 71 00

A relação Médico Doente terá futuro?

Autor: M.M. Camilo Sequeira, Médico aposentado

 

A prática assistencial que era padrão há 50 ou há 30 anos alterou-se de forma rápida para o paradigma actual, criando-se de facto um novo padrão, que muitos, talvez a maioria, entendem como uma mudança para melhor.

E se olharmos para as novas especialidades farmacêuticas, as tecnologias de investigação e tratamento hoje disponíveis ou, muito especialmente, para os conhecimentos que a investigação nos ofereceu sobre pormenores de fisiopatologia que são hoje basilares e sobre os diversos mecanismos correctores de “defeitos” que até há pouco julgávamos ser material identitário intocável, parece óbvio que assim aconteceu.

Também, por isso ou a par disso, a formação médica se alterou.

Por um lado porque o nível de saberes genéricos pré-universitários passou a ser elevadíssimo e porque cada aluno trás uma experiência de aquisição desses saberes que o torna um potencial investigador imaginativo, com prática competitiva e um muito provável treino de crítica pessoal e do outro. Nada disto se compara com as regras de admissão à Faculdade de há meio século onde a “selecção era pouco selectiva” permitindo a entrada a alunos de excepção e aos muitos que eram simplesmente estudantes razoáveis.

Falava-se então, muitas vezes, da vocação como sendo o critério primeiro de escolha da actividade clínica assistencial. E embora continue a ouvir falar dela com respeito não é para mim claro que esta variável tenha hoje o mesmo significado de antanho. O que não é relevante porque os conceitos podem mudar de significado de acordo com cada tempo em que são utilizados. Ou então mantêm o significado mas podem perder significância em certas circunstâncias da vida colectiva.

Por outro lado o ensino universitário embora pareça querer manter-se cooperativo entre pares e com partilha de ajudas está “contaminado” pelos condicionalismos sociais desta época e pelo valor relativo, não cooperativo, da necessidade de se ter de aprender muita ciência, muito suporte tecnológico desta, muita experiência de trabalho de pesquisa e quiçá, menos de arte médica seja qual for o entendimento que cada Médico tiver deste conceito. Mas esta potencial diversidade assenta num comum que continua inquestionável: o trabalho médico faz-se com pessoas que estão algumas vezes doentes e outras “apenas” e lamento o uso desta expressão tão obviamente grosseira neste contexto, em sofrimento. É por trabalhar com estas pessoas que o exercício clínico tem como propósito primeiro, segundo e terceiro tratá-las aproveitando o específico de um relacionamento em proximidade e, muitas vezes, íntimo.

Dito de outra forma o trabalho médico implica, por definição, ter tempo para falar com as pessoas que decidem procurar ajuda para melhor viverem as suas vidas junto de quem entendem ter competência para o fazer: o Médico.

Este específico da arte médica, que sejamos claros a não esgota, também tem de ser ensinado. E não se trata de ensinar a falar, a dizer palavras com maior ou menor sentido. É antes aprender a falar com quem precisa de ser ouvido “seja o que for que tiver para dizer”. É ainda aprender a falar orientando o diálogo em função do que se ouve. Aprender a falar de acordo com a sensibilidade do outro que tem de ser identificada e percebida como relevante nesse diálogo.

E é esta “parcela” da arte médica que quer o ensino quer a forma de viver actual têm, ou parece que têm, valorizado pouco senão mesmo desvalorizado.

E não creio que seja por a não reconhecerem como importante. Julgo antes que perante as exigências tecnológicas e de funcionalidade dos serviços foi, lenta e progressivamente, sendo “esquecida” face ao ganho de importância de outras variáveis assistenciais.

Ou será que não foi assim tão lentamente?

Durante o tempo da Medicina que hoje chamamos “paternalista” porque o decisor único era o Médico, o cuidador, a intervenção dialogal deste, quer a autoritária quer a condescendente, assentava num critério de confiança entre parceiros, mais ou menos acrítica, que tinha a enorme vantagem de resolver, isso mesmo resolver num sentido próximo de curar, a maioria das “doenças” de muitíssimos doentes. Era o ser-se ouvido, era o ouvir uma informação desdramatizadora, era o desejo de ficar bom “por ter ido ao doutor”, era enfim a certeza de nos contextos sociais de cada um, cada um receber nesse encontro um caminho que fosse simplificador das dificuldades que os doentes encontravam para o trilhar. E era assim fosse qual fosse o local da estratificação social ocupada pelos diferentes doentes. Os cuidados eram diferentes de acordo com as capacidades económicas de cada pessoa mas na grande maioria das patologias, que são felizmente menores, o benefício do encontro Médico-Doente estava sempre presente como seu potencial resultado final. O objectivo de quem procurava ajuda era alcançado e o objectivo de quem tinha o compromisso de ajudar, pelo menos parcialmente, também o era.

Hoje as tecnologias híper-sofisticadas de investigação, que eu tenho a percepção de serem utilizadas muito excessivamente, não alteraram de forma significativa a prevalência das patologias irrazoavelmente tidas como menores. Por outro lado a complexidade da vida quotidiana até terá aumentado o seu número quer em valor absoluto quer em valor relativo porquanto a facilidade de acesso a cuidados médicos permitiu oferecer a todos o que antes apenas era possível ser usufruído por alguns.

Pelo que se pode dizer, com razoável grau de segurança, que a formação médica cientificada de hoje não se destina a um universo de doentes patologicamente diverso do de há 30 ou 40 anos atrás. Há patologias muito graves que são agora tratáveis, ao contrário de um passado próximo, mas estas, felizmente, não constituem a maioria das patologias que procuram tratamento. E se é assim hoje, como era ontem, não parece razoável acreditar que será diferente amanhã.

Julgo, pois, ter sentido especular sobre como será a assistência médica num amanhã de mais ou menos, por exemplo, meio século.

Claro que especular implica correr o risco de afirmar disparates. E num tempo em que as mudanças, seja qual for o tipo destas que consideremos, é tão acentuado e rápido este risco é desmesuradamente elevado. Porém, mesmo assim, julgo ter sentido reflectir sobre o assunto.

Em Portugal o fim da componente terapêutica na relação entre os Médicos e os seus doentes resultou de uma orquestração política assente num preconceito pessoal de uma governante (e decerto não exclusivo desta). Temos de admitir (porque qualquer outra hipótese implica definir como crime social o conjunto de procedimentos que considerou adequados ao seu propósito) que o fez com o objectivo de anular a preponderância social de um grupo profissional que entendeu ser um obstáculo à implementação de medidas, no âmbito da saúde colectiva, que tinha como úteis ao país.

(Pessoalmente não tenho esta perspectiva compreensivista sobre a atitude política e os propósitos da governante. Mas enquanto autor de uma reflexão que proponho a qualquer leitor sinto-me obrigado a dar-lhe acolhimento).

De um momento para o outro a diabolização da profissão (ou dos profissionais o que, naquele contexto, é exactamente o mesmo) anulou os critérios de confiança que a definiam como prática e criou nos Médicos uma nova atitude em relação à forma de comunicar com os doentes. Esta foi ficando cada vez mais orientada para a objectivação das opiniões clínicas interpretativas, ou seja menos orientada para o doente e muito mais para o sinal do meio complementar de diagnóstico.

Os custos sociais e financeiros desta nova estrutura relacional não está feito e duvido que o venha a ser a curto-médio prazo. Quer porque não há interesse político em fazê-lo quer porque as variáveis a considerar não são consensuais. Mas defendo “sem o poder objectivar” que o que passámos a designar como Medicina defensiva é um dos critérios sobre que se construiu quer a ruína financeira do Serviço Nacional de Saúde quer a preponderância da indústria de saúde que o mercado assistencial privado adquiriu (e embora seja deselegante, até porque há um grande hiato temporal entre os dois factos, chamo a atenção para a circunstância de a governante em causa ser o primeiro responsável por uma dessas estruturas industriais da saúde. Assumo esta deselegância porque entendo que é merecida).

Esta modificação de um elemento fulcral da assistência médica está hoje esquecida apesar de estar muito presente nas discussões do “preço” do SNS, nos comentários à tão publicitada sobre utilização dos serviços assistenciais ou nas análises ao suspeitado uso excessivo de meios complementares de diagnóstico. Mas também está presente quando se discutem a medicina defensiva, a judicialização dos actos médicos ou os mais louvados consentimento informado e partilha de decisão clínica embora estes talvez menos relacionáveis com a mudança em causa.

Há hoje um fosso, que na prática é pouco profunda mas que ideologicamente é um verdadeiro “sem-fundo”, entre os Médicos que defendem a Medicina centrada na relação e com o doente como base da assistência e os que defendem uma Medicina totalmente cientificada com suporte na evidência da tecnologia e onde a doença a tratar é a prioridade das prioridades.

Os ganhos em interpretação clínica, quer diagnóstica quer terapêutica e em redução da incerteza semiológica e das margens de risco dos tratamentos que o desenvolvimento tecnológico, associado aos novos conhecimentos científicos básicos e complexos que esta tecnologia tem alcançado, são critérios poderosíssimos que justificam a defesa desta nova perspectiva assistencial.

Até porque mesmo os clínicos semiologistas tradicionais os reconhecem e utilizam nunca evitando as vantagens que esta nova perspectiva lhes oferece.

No entanto o fosso persiste.

E não se trata de teimosia ou de obstinação contra o novo. Nada disso. Trata-se antes de tentar evitar que morra uma interpretação da prática assistencial que dá ao doente um espaço de diálogo indiferente à gravidade, para os Médicos, do que justifica esse diálogo.

Há, de facto, o receio de se perder a noção de que todos os doentes têm de ser tratado de modo igual seja qual for a relevância (que cinicamente posso designar como curricular) das suas patologias ou simplesmente das suas queixas. E a cientificação, a evidência, a objectividade, acarretam esse risco que se considera inaceitável. Não por se ser “contra” estes valores mas por se ser “contra” a sua exclusividade, o seu absolutismo. Por se acreditar que o novo não é bom por isso mas por ser uma continuidade com um velho que tinha qualificações que se não devem desperdiçar.

Nas ciências sociais não há certezas. Nem absolutas nem definitivas e a Medicina é uma ciência social. E nobilíssima porque junta na mesma competência o conhecedor de um saber científico e o profissional prático que é sensível ao específico da expressão desse saber em cada particular doente. De certa maneira o domínio da incerteza e a humildade em a reconhecer, que são próprios da arte médica, até podem ser considerados como uma expressão do fazer medicina individualizada. Só que “à moda antiga” e muito antes deste tipo de prática estar em uso como se acredita vir a acontecer num futuro próximo como resultado “natural” dos ganhos científicos alcançados com as tecnologias que hoje não dispensamos. O que se afirma ser o objectivo excepcional a alcançar com estas já era comum, pelo menos como propósito e reflexão, muito antes delas.

O encantamento com o que são constantes acréscimos de saber, com o óbvio melhorar das condições de investigação clínica e de tratamento, com menos agressões, com menos dor (caramba, o quão “vantagem” isto é), com internamentos mais curtos, com menores tempos de recuperação ou de adaptação a próteses diversas e cada vez mais sofisticadas e próximas do ser biológico, com a atomização de quase tudo que antes era teatralmente dimensionado é justificação compreensível para que a perspectiva “moderna” domine a discussão que aqui abordo.

E ninguém poderá dizer que hoje quando se valoriza prioritariamente a doença se deixa de tratar o doente. Ninguém o dirá, de facto. Mas lá no fundo da sala continuará a ouvir-se alguém dizer “sim, mas… apesar desses ganhos o tratamento não está completo”.

Estas vozes vão continuar a fazer-se ouvir nos anos próximos. Claro que vão estar sempre dominadas, quase silenciadas, pelo ruído que farão os quase diários êxitos tecnológicos. E uns e outros, estamos certos disso, utilizarão na sua prática esses ganhos embora não o façam necessariamente da mesma forma apesar de ambas as perspectivas o fazerem sempre em função do que, momento a momento e apreciação em apreciação, for considerado como necessário e correcto. Nunca será demais salientar que o útil para a doença não tem que ser menos útil para o doente e vice-versa. O conflito é ideológico e não tem a pessoa que o justifica como, sequer, potencial prejudicado ou prejudicado menor.

Mas a especulação sobre o amanhã permite-me afirmar o que hoje parece um disparate: Acredito que a distância nos ensinará que as maravilhas da tecnologia que hoje nos surpreendem tão satisfatoriamente quando apreciadas no seu futuro, mais ou menos próximo, revelarão fragilidades que o actual espanto nos impede de ver. Admito que não serão motivos que nos levem a renegá-las. Mas serão motivos que nos farão repensar a sua utilização indiscriminada como recurso único para muitas expressões de sofrimento, a reavaliar o seu custo-benefício em comparação com outros meios de investigação ou tratamento, a repensar o que somos como seres biológicos quando essa condição se confrontar com melhorias extraordinárias de algumas capacidades que terão de conviver, na mesma pessoa, com óbvias e irreversíveis limitações que, nalguns casos, impedirão ou reduzirão muito a fruição dessas vantagens.

Será nesse tempo, talvez mais próximo do que muitos de nós o queiramos admitimos, que voltarão a ouvir-se de bom som as vozes clamando por um retorno ao contacto com os doentes centrado nas problemáticas clínicas destes “sejam quais forem as especiosas informações que a tecnologia identifique…”

“…Porque da sua eventual correcção nada resultará de benéfico ou vantajoso para o doente”.

E sim, assumo que ser Velho do Restelo não me apoquenta. O que me apoquenta é recear que alguém doente possa ser tratado de uma doença identificada pela tecnologia quando o que essa pessoa pretendia era dizer ao Médico que tinha uma preocupação na vida que lhe causava sofrimento e que, achando estar doente por isso, necessitava de ajuda que, entendia, apenas lhe poderia ser dada por esse Médico. Pessoa doente que não estava preparada para ouvir ser-lhe dito, após a série de exames que fizera, que tinha uma mal formação assintomática que carecia de um tratamento agressivo que era potencialmente curativo.

Não sou dado ao humor mas reconheço que um dos problemas deste é, por vezes, estar demasiado próximo da realidade. E se um estereótipo não é pedagógico, pode ser, julgo, provocatório o bastante para, pelo menos como reactividade, obrigar a pensar nele.