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Porque não falamos sobre a morte?

Autora: Diana Igreja André, Médica Interna de MGF na USF Afonso Henriques

Resumo: Este artigo tem como objetivo incentivar o pensar sobre a morte, à parte de discussões possíveis sobre cuidados paliativos, eutanásia ou temas relacionados. Não pretende, por isso, definir ou explicitar conceitos, mas sim, consciencializar para um assunto importante, mas que permanece tabu.

Numa sociedade em que se discutem o papel dos cuidados paliativos e a aceitação da eutanásia, porque não falamos sobre a morte? Numa sociedade em que se multiplicam debates sobre temas de grande complexidade ética e filosófica, como a dignidade da vida, a justiça social e a identidade de género, porque não falamos sobre a morte? Numa sociedade fascinada por histórias de sucesso, mensagens inspiradoras e finais felizes, porque evitamos falar na morte?

A vida de alguém é muitas vezes contada ou idealizada como uma história cinematográfica, e se o narrador for favorável, será um filme generoso e emotivo. Nesta sequência, a morte deveria ser o final feliz que todos queremos ouvir, e não o desfecho inesperado e dramático que escurece o que foi contado, ou o futuro enigmático do “e viveram felizes para sempre”. Mas, na verdade, a morte é poucas vezes contada, poucas vezes discutida, e é pensada muito menos ainda; e tantas vezes quando o é, o motivo é a sua antecipação e não a sua relevância. É natural que assim seja, pois, a reflexão sobre a morte pode ser dolorosa, ao suscitar o confronto com a degradação do corpo, a perda de capacidades físicas e intelectuais, a dependência, e a possibilidade de que o sofrimento dos últimos dias faça perder o bom que se teve em vida. Para além disso, certas barreiras de cariz cultural e/ou religioso podem contribuir para este tabu. E que importância pode ter o pensar na morte e no seu processo?

Acredito em Pasteur que (num contexto laboratorial, mas que me parece tão certo na generalidade) afirma que “a sorte favorece o espírito preparado”. Acredito que mais e melhores recursos físicos e mentais se associam a uma maior probabilidade de ultrapassar obstáculos e de aproveitar oportunidades, que de outra forma poderiam ser tidas como adversidades. O “estar preparado” em relação à morte poderá significar simplesmente o abordar e refletir internamente sobre o assunto, não numa situação de crise ou necessidade, mas num estado de saúde e disponibilidade física e mental. Acredito que a reflexão atempada sobre a própria morte e a dos entes queridos, pode fazer antecipar algumas das dificuldades e dos medos associados a esse momento. Para além disso acredito que pode contribuir para uma maior consciência sobre o que é mais importante em vida, para que a aceitação, a reconciliação e o reajuste dos sonhos e das expetativas possam impedir que o desespero, os arrependimentos e a frustração dominem os momentos finais de alguém, ou marquem irreversivelmente os seus familiares e amigos.

Acredito que a medicina e os sistemas de saúde atuais podem, e devem estar, preparados e munidos de recursos para ajudar os indivíduos a ultrapassar as dificuldades relacionadas com o confronto com a sua própria morte e a dos seus familiares ou amigos próximos. Sem dúvida que os cuidados paliativos são, neste momento, a estrutura mais bem preparada para o efeito, mas infelizmente estes cuidados ainda não são tão abrangentes quanto o necessário. Portanto, parece-me essencial que todos os profissionais de saúde se mostrem disponíveis para o debate sobre a morte e as circunstâncias relacionadas, sob pena de que as próprias crenças e medos interfiram com as necessidades e expetativas dos doentes que os procuram. Parece-me igualmente fundamental que o debate se estenda para a comunidade, considerando que uma das maiores estratégias para a melhoria e a adequação dos cuidados de saúde é a capacitação da população e a educação para a saúde. Crendo nisso, uma população informada é capaz de decisões mais autónomas e conscientes; uma população capaz de pensar nos seus medos e angústias em relação à morte é uma população mais bem preparada para lidar com as dificuldades associadas; uma população mais consciente da sua finitude e da finitude dos seus poderá pensar com mais clareza nas consequências das ações que tem em vida.

Talvez devamos pensar e falar sobre a morte, talvez devamos quebrar este tabu. E talvez, com “sorte”, a morte seja o final feliz da nossa história.