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O Serviço Nacional de Saúde, a Saúde Privada e a Formação Específica

Autor: João Coucelo

 

Resumo: Pretende-se fazer uma análise sistémica do que tem sido a degradação do SNS, o papel dos diferentes intervenientes e tutelas.  Seguindo-se um raciocínio que expõe como as consequências de más políticas de saúde e a gestão danosa de recursos se relacionam com a posição atual e as vantagens para os grupos privados de saúde.  Para por fim, perspectiva-se um mercado de formação especializada em Portugal como decapitação final do SNS.

 

Descritores: Serviço Nacional Saúde, Políticas Saúde, Estudantes Medicina, Internos Formação Específica, National Health Service, Health Policies, Medicine Students, Residency, Internship.

 

O acesso aos cuidados de saúde e a qualidade dos mesmos, são uma prioridade para a população [1]. Consequentemente, por um lado, os políticos usam a “saúde” como o estandarte número um nas campanhas eleitorais, e por outro, os grupos de saúde privada esforçam-se por controlar as políticas de saúde.

 

Escassez de Médicos e os Intervenientes

            Numa análise ponderada e assertiva, a Ordem dos Médicos (OM) vem desde há muito a alertar a tutela de que o problema não é a falta de médicos propriamente dita, o problema é a falta de dinheiro no Serviço Nacional de Saúde (SNS) para contratar horas de trabalho médico [2].

            Entre argumentos de que se há ou não excesso de médicos, se estamos em linha com os números dos países da União Europeia, havendo excesso, o porquê da região X não ter médicos da especialidade Y, e quando os tem, o porquê dos tempos de espera para consultas da especialidade Y ou Z e o porquê da falta de capacidade formativa, sobra uma outra visão que vai muito além destes argumentos: o que é que se exige aos que já estão no SNS e se exigiria aos que se precisa de contratar? Há muito que as condições de trabalho se degradam, que os salários e carreiras não são atrativos.

            Pese embora a situação limite, chegámos ao ponto em que há um excesso de candidatos para a capacidade de formação especializada. Como ver este assunto num “ecossistema” onde o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) e a OM têm pleno controlo? Num SNS com sinais óbvios de falta de médicos nas diferentes especialidades, houve um aumento constante dos numerus clausus para os cursos de medicina e ao mesmo tempo há uma dificuldade crescente no acesso à formação especializada, em particular às especialidades mais carentes, acumulando-se um número crescente de médicos sem acesso a uma vaga de formação específica. Não bastasse isto, recentemente, o Estado não só demorou uma eternidade a abrir concursos para os recém especialistas, como se constatou que os concursos ficaram muito longe de colmatar as verdadeiras necessidades dos serviços. Estes são apenas alguns dos resultados das políticas desenvolvidas por gente que, por um lado foi e é incompetente e por outro lado, defendeu e defende uma cartelização da medicina e os interesses  dos grupos da saúde privada. Ninguém que trabalhe com um verdadeiro sentido de Estado, de garantir uma estrutura que dê resposta às necessidades da população em geral, para mais com o controlo das diferentes fases da formação e contratualização médica, pode, por um lado queixar-se da falta de especialistas e por outro lado, ter médicos que ficam sem acesso à especialidade e ainda assim manter os numerus clausus para o curso de medicina.

            O Estado precisa tanto que os estudantes de medicina se tornem médicos, como se especializem, como em seguida ingressem no SNS. No entanto, os sucessivos governos têm vindo a transformar o acesso à especialidade e o contracto como especialista num privilégio.

            A solução não pode passar por deixar acumular médicos indiferenciados, isso, é óbvio que resulta num ciclo vicioso que diminui cada vez mais a resposta do SNS, tanto para a formação de internos, como para dar resposta aos doentes. Surpreendentemente ou não, tudo isto favorece triplamente os grupos de saúde privada.

 

Consequências para o Sistema Nacional de Saúde e os Grupos Privados de Saúde

            O lobby dos grupos de saúde privada tem todo o interesse na persistência e agravamento destas medidas economicistas. Para estes lobbies, o ideal é um SNS com pouca resposta, com poucos médicos e recursos, ou seja, um SNS de onde os doentes que podem, fogem na direcção dos privados mas um SNS suficiente para receber aqueles com complicações e/ou que já não têm plafon para se manterem no privado; é também um SNS que dada a falta de capacidade de resposta, precisa de convenções com os privados por forma a escoar as listas de espera de cirurgias e exames complementares [3]; é ter um Estado com um SNS incapaz de responder às necessidades mas que ainda assim arranja forma de explorar os seus contribuintes através do maior mecanismo de financiamento garantido dos grupos de saúde privada, isto é, a ADSE [4].

            Um SNS com más condições laborais é um fomento para que os médicos trabalhem por menos nos privados, um sistema com “excesso” de médicos fora do SNS é, pela lei da oferta e da procura, benéfico para os privados. Assim, com a crescente degradação das condições laborais no SNS, deu-se a previsível fuga de clínicos no sentido dos grupos de saúde privada. Esta fuga, para além de gerar uma ainda menor resposta dos serviços do SNS, gerou também uma carência de capacidade formativa especializada, ao mesmo tempo que permitiu que estas unidades privadas obtivessem idoneidade formativa.

 

Grupos Privados e a Formação Especializada

            Como consequência, desde há alguns anos, a ACSS contratualizou a abertura de vagas para internos de diversas especialidades em unidades dos grandes grupos privados de saúde.  Portanto, o Estado gasta recursos a formar médicos para em seguida oferecer mão-de-obra aos grupos privados. Mão-de-obra (mais barata) que lhe falta? [5].

            Em breve, com a aparentemente inevitável e crescente acumulação de médicos indiferenciados, advinha-se que os privados, criem um mercado de formação especializada (a exemplo do que já acontece em alguns países). Tudo com o alto patrocínio de políticas de saúde desenvolvidas à medida do lobby dos grandes grupos de saúde privada.

            Qual é a necessidade do Estado se prejudicar beneficiando o lobby dos grandes grupos de saúde privada? Qual é a necessidade de destruir um dos serviços de excelência pelo qual Portugal é reconhecido?

            É necessária uma intervenção que priorize os elementos que permitem que o SNS dê uma resposta cabal, que priorize o acesso da população a um SNS universal e tendencialmente gratuito, ao invés de um Estado que prioriza a banca (que coincidentemente ou não, detém grande parte dos grupos privados e seguradoras que vendem seguros de saúde).

            É preciso parar o desmantelamento do SNS em curso.

 

Referências

[1] http://www.oecdbetterlifeindex.org/responses/#PRT

[2] Silva JM. Diário de Notícias. https://www.dn.pt/portugal/interior/medicos-que-acabam-especialidade-sao-o-triplo-dos-que-se-reformam-5606595.html

[3] Diário da República n.º 152/2009, Série I de 2009-08-07, Portaria 852/2009, Pg 5149 – 5167

[4] Arnaut A, Semedo J. Salvar o SNS. Porto Editora

[5] Diário da República n.º 40/2018, Série I de 2018-02-26, Decreto-Lei n.º 13/2018