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O futuro existe se o construirmos

Autor: M. M. Camilo Sequeira, Médico aposentado

O tecido social do país “Portugal” (e provavelmente de muitos outros países) está a ser destruído em nome do que os decisores políticos, com suporte científico, consideram um mal maior. Entre evitar esta destruição e promover as medidas adequadas (!) à redução da agressão da pandemia “Covid” preferem-se estas em quase todo o mundo.

Em boa verdade quem tem salário certo ao fim do mês considera legítimo arruinar o presente e o futuro de quem não tem essa vantagem social: os que sobrevivem com salários curtos, com que comem diariamente o que diariamente recebem e que são pagos de má vontade por patrões insensatos e insensíveis.

Esquecendo-se os outros, os que têm salários pequenos mas que julgam certos, que amanhã serão os seus rendimentos ou pensões que deixarão de ser pagos. Pior; que em breve passarão a ser pagos ora uns ora outros antes de todos serem igualmente perdedores do direito que tinham como definitivo e intocável.

A indiferença, com ou sem compaixão, em relação aos que já estão a ser marginalizados é o passo certo para, no tempo seguinte, serem estes indiferentes a integrar esse grupo dos pobres que não possuem capacidade financeira para se alimentarem e existirem com dignidade. E esta questão do existir “com dignidade” não é menor pois é este valor, de difícil definição mas que todos sabemos usar, que faz com que a vida valha a pena.

No hoje são os trabalhadores do mundo das artes, do espectáculo, os profissionais da restauração e da hotelaria, são os agentes de viagens, os funcionários de instituições de apoio social que estão secundarizados pelo poder político e que têm pouca expressão no ruído dos “medias” onde falam separados, cada um procurando afirmar o injusto do seu particular grupo profissional.

Mas já são muitos a falar e amanhã serão muitos mais se se afirmarem publicamente como grupo com uma circunstância identitária, a sua sobrevivência, mostrando dessa forma aos decisores que valem não os votos que davam, se os davam, aos partidos mas o seu “número brutal como projecto político”.

É imperioso acordar estes pobres e novos pobres para o poder que o seu número crescente lhes oferece. Não para que se apoiem em partidos irracionais que se afirmem seus representantes nem para fazerem pressão ordinária sobre os convencionais. O poder do seu número e a diversidade social que é seu específico obriga-os, para terem futuro, a organizarem-se eles mesmos como corrente de opinião ruidosa o bastante para acordar no poder institucionalizado o dever de governar a favor do seu direito a viver.

E tem de ser recordado que as forças de segurança, embora sejam os últimos (em boa verdade serão os penúltimos porque os decisores, embora o não percebam agora, é que serão os últimos) a perder o salário certo no final do mês se encontram, pelo menos em Portugal, entre os trabalhadores mal pagos sendo por isso membros potenciais deste numeroso grupo dos excluídos.

Não nos iludamos. Entregar a gestão de um problema social complexo, que resulta e promove a desigualdade, a quem tem a carteira recheada é meio caminho andado para o disparate e para o acentuar dessa desigualdade. A alternativa a este dramático, em democracia, é a organização dos excluídos como classe com um objectivo político único: proteger o seu direito ao trabalho mesmo que tal possa acarretar riscos de morte, por doença ou fome, para os próprios e para terceiros.

Risco que já é actual para os excluídos pelo que morrer sem defender este direito basilar da existência é não recusar uma gestão desigual e voltar à Idade Média com o isolamento dos privilegiados e a esperança numa intervenção divina que resolva o problema. E já agora que castigue os “maus” e premeie os “bons” se alguém souber identificar uns e outros.

Esta figura salvífica não existe. Hoje como ontem se não for o pobre a gritar que existe e que não quer nem ser pobre nem ser ignorado ninguém o gritará por ele.

Mas esta violência afirmativa só terá expressão socialmente aceitável se este novo grupo de pressão souber manter a sua identidade, que é a diversidade dos seus integrantes, e se criar como democracia onde cada um terá voz mas diluída na voz que será a do grupo.

Num tempo de indisciplina relacionada com o individualismo dominante e de falta de educação cívica básica generalizada este é um programa de enorme dimensão política, de enorme dificuldade construtiva e de enorme alcance social. Mas também é, será, de grande treino-aprendizagem para se construir, com os partidos que nos devem representar, uma sociedade justa e equitativa na forma de lidar com os seus membros.

Não se pode defender, seja sob que pretexto for, que num país existam beneficiários de vantagens sociais essenciais ao sobreviver a que outros não têm direito. Claro que sempre foi assim. Mas é igualmente claro que estamos sempre a tempo de tentar que estas diferenças o sejam menos. E neste tempo pandémico em que as desigualdades são criadas aos olhos de todos, ninguém poderá dizer que não vê, que não sabe, que nunca se deu conta da sua existência. A desigualdade no tratamento diferenciado dos cidadãos do país mostra-se rua a rua e localidade a localidade para já não dizer que se vê dentro de muitas casas.

É a classe média que deixa de o ser, é a pobreza que se cruza connosco na rua, é o conflito social latente, é o medo de gastar dinheiro, os que o têm, que pode faltar amanhã. Mas também é a estranha aceitação dos que escolhemos para nos governarem numa sociedade justa (onde queremos viver) da inevitabilidade dessa diferença de direitos entre os que ainda têm pão todos os dias e os que já nada têm.

A vida tem de ser partilhada. Aliás a vida só tem sentido humano se for partilhada. E cada um de nós em todo o seu tempo de existência tem de saber que só existe porque o outro é seu parceiro de vida. E que existe por isso. De cada vez que deixamos esse outro perder-se é um passo que damos para a nossa perda. Por isso dizemos: marginalizados, juntem-se e façam-se ouvir como grupo. O futuro, vosso e nosso, precisa dessa corrente de opinião.