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Juventude no século XXI

Autor: M.M. Camilo Sequeira, Médico aposentado

Convencionemos que a juventude se vive nos primeiros 30 anos de vida.

No pós segunda guerra mundial a vontade de não se repetir tal dramático dominou as políticas de vários países, mormente no mundo ocidental, tendo-se criado um tempo de viver com maior prosperidade também relacionado com o surgimento, crescimento e posterior afirmação de uma classe média, com redução da desigualdade social pela criação de novos empregos e a procura de pessoas qualificadas para diversos trabalhos especializados. A necessidade desta qualificação, que se identificou e julgo que bem com o progresso, obrigou à abertura das Universidades a essa nova classe média e à subsequente deselitização do ensino superior com a proletarização de múltiplas actividades que até então eram de acesso muitíssimo condicionado.

É neste contexto que surge uma entidade sócio-política até aí quase desconhecida, a juventude, com identidade própria, valores não coincidentes com os da ordem estabelecida, capacidade de exercício livre do poder à margem dessa ordem por ganho de autonomia resultante quer do seu trabalho quer da emancipação financeira de familiares que, mesmo questionando esses novos valores, queriam a ascensão social dos seus filhos e os apoiavam nesse propósito.

A afirmação social desta força política inicia-se logo em meados do século XX atingindo o seu apogeu nos anos 60 e 70. Com forte motivação contestatária das guerras localizadas que a sociedade promovia como alternativa a outra guerra, generalizada, de efeitos reconhecidamente impossíveis de gerir; com contestação das regras de relacionamento entre grupos sociais questionando o normativo “prateleira” que pretendia limitar o espaço de convivialidade a pessoas de estrato idêntico sem mistura com os “outros” geralmente tidos como menores; com contestação do que se pretendia que era o equilíbrio da sociedade, mormente a família como valor intocável, o respeito acrítico pelas hierarquias, a religião, a ordem, a autoridade, o poder instituído.

O ser-se Médico, Advogado, Juiz, Engenheiro e vários outros profissionais que eram vistos como donos de um saber intocável deixou, pouco a pouco, de ser domínio de grupos familiares ou próximos do poder financeiro e democratizaram-se lentamente por duas vias: a feminização das actividades com progressivo predomínio de mulheres profissionais quer diferenciadas quer indiferenciadas e de filhos e filhas da nova classe média desejosa de se afirmar pela defesa desse novo estatuto tão dificilmente alcançado. E, diga-se com toda a clareza, sempre ameaçado pelos poderes tradicionais do dinheiro e do bem-nascido.

Foi um movimento abrangente pois, ainda que tendo expressões diferentes, se manifestou quer no capitalismo florescente que parecia o paraíso quer num espaço que se dizia comunista mas que, como o sabemos hoje, era uma forma de viver no inferno. No entanto, embora diferentes na forma, todos queriam gritar que o Jovem existia e queria, devia, ser agente da construção do futuro.

A consciência política era dominante nestes grupos porque a opressão era a normalidade social que se pretendia alterar. E a violência de alguns era a resposta considerada como adequada para se defenderem da violência apoiada por Leis que, de facto, eram o que se questionava.

Dificilmente se poderá dizer que havia uma ideologia a dominar estas contestações pois mesmo que nalguns espaços do (pretendido) paraíso capitalista se idealizasse o (pretendido) paraíso socialista também neste último se idealizava o outro. De facto o que se pretendia, num e noutro lado, era a alteração da normalidade que se sentia ser anormal como regulador da vida colectiva.

Portugal também viveu este tempo em que ser-se Jovem era querer mudar. Apesar da cosmética do exame prévio, da Direcção Geral de Segurança e das “conversas em família” a guerra estava presente na vida de todos (decerto se recorda do seu familiar, vizinho, amigo, que a guerra estropiou), a emigração e o “salto” eram ruidosamente silenciados e havia o José Afonso, o Adriano, o Sérgio Godinho e outros e até as “Doce”, bem mais tarde, eram vontade de mudança (vá ao cinema ver “Bem Bom”. Perceberá do que estou a falar e ajudará um sector do país em grandes dificuldades de sobrevivência).

Esta agitação, dum lado e doutro da “cortina de ferro”, na América latina e nos Estados Unidos, no Oriente distante, era a procura de algo mais ou menos indefinido que tinha de existir, que era necessário que existisse, que se sentia já existir nalguns lugares, e é minha convicção que não tinha uma orientação estruturada. Apesar do seu conteúdo político ser evidente ao estar contra o que se queria que fosse uma normalidade estagnada não era um movimento internacional de massas contestando a ordem estabelecida. Era um tempo particular da sociedade em que as escolas se abriram criando mais espírito crítico, em que a exploração do trabalho era sentida como uma agressão ao direito de se viver dignamente. Mas o que poderíamos designar como consciência de classe de estudantes e operários, percebendo-se como partes de um mesmo todo, não foi o padrão dominante desse movimento político profundamente enraizado na ideia de que o estado social de que tanto se falava não correspondia na prática aos seus normativos teóricos.

Mas se não ocorreu uma revolução na forma de governar o bem colectivo é verdade que se criaram novas regras de convivialidade e partilha que o poder instituído ia lentamente integrando como expressão de um novo normal a que se não conseguia opor.

Esta geração que tinha 20 ou 30 anos pelos idos de 1960-1970 conseguiu ganhar o espaço público e ter notoriedade bastante para influenciar a criação de um mundo menos desigual, mais pacífico e solidário. Este novo mundo foi discutido em todos os ambientes populares, académicos, de tertúlia, foi artisticamente representado, foi cientificamente reconhecido como melhor do que qualquer outro tempo do passado pelo que se pode afirmar que pelo menos uma parte importante da sua motivação teve as consequências desejadas.

Sendo legítimo questionarmo-nos sobre o porquê de quando deixaram de ser Jovens e muitos deles chegaram ao poder, o mundo se voltou a orientar para a desigualdade, para a competitividade indiferenciada, para a redução da empregabilidade, para a aparente normalização de comportamentos disruptivos de corrupção e nepotismo.

Eu sei. O mundo hoje é incomparavelmente melhor do que aquele em que nasci. E sei que há mais riqueza, que há menos pobres e que a escravatura oficial não existe. Também sei que as mulheres têm acesso, pelo menos teórico, a todos os tipos de actividade e que são pagas com salários iguais aos dos seus colegas homens. Sei que o apoio ao diferente, ao limitado, ao deserdado da felicidade é preocupação da maioria das democracias. Sei tudo isso mas também sei que estas vantagens estão longe de ser um novo padrão de normalidade. Mesmo nos países mais avançados, mais ricos, mais solidários, de potencial igualdade face à religiosidade.

E é este pequeno-grande particular que me inquieta porque estamos a descrever o mundo criado pelos Jovens de 1960-1970 que se tornaram poder. E não era isto que eles pretendiam: o seu propósito era influenciar a criação de vida em um tempo de paz, de partilha social com desigualdade mínima e com possibilidades reais de cada um escolher o seu próprio e pessoal caminho de bem-estar e felicidade.

Não termos chegado aqui é a prova de que algo falhou, sendo razoável reflectir sobre o que pensará disto a Juventude que tem hoje 20 ou 30 anos. Será que estes Jovens estão felizes com o mundo que lhes oferecemos e que, como diziam os que eram poder há 50 anos, afirmamos ser o melhor “sem alternativa”?

Não podemos ter razão. E espero que estes novos Jovens pensem o mesmo. Principalmente porque é preciso… E se é preciso genericamente creio que o é, e muito, para os Médicos, para os Jovens Médicos.

No meu tempo formativo o objectivo do Jovem Médico era alcançar um lugar na carreira hospitalar tida como o exercício clínico mais prestigiante, com maior potencial de aprendizagem permanente e de criação de ligações profissionais potencialmente geradoras de oportunidades de trabalho nas condições de excelência que se confabulavam.

Queria-se ganhar competência, respeito e apreço dos maiores, autonomia e segurança dadas pela certeza de haver sempre alguém a quem recorrer perante quadros de complexidade que receávamos não conseguir resolver, sózinhos, da melhor forma.

Acredito que o Jovem Médico de hoje também procura estes valores. Mas a novidade desta geração é que já não o faz olhando exclusiva ou preferencialmente para o Hospital.

Tenho lido nas páginas da Revista da Ordem muitos e diversificados artigos escritos por Jovens Médicos que se apaixonaram pela Especialidade de Medicina Familiar onde se percebe empenho, dedicação e vontade de fazer bem. E muita reflexão sobre o que é ser-se Médico, ser-se ouvinte e cuidador das tão variegadas expressões de sofrimento dos doentes, ser-se membro de uma comunidade a quem se quer oferecer o valor da diferenciação com uma compreensão elaborada e adaptada ao interlocutor, à forma de viver no local onde trabalham.

E fazê-lo cientificamente, com controlo de qualidade, com cruzamento de experiências para se manter continuadamente a melhoria assistencial, o ganho de saberes e a capacidade de formação da geração seguinte nos mesmos propósitos de praticar assistência clínica científica de excelência partilhada quer com os pares do mesmo local de trabalho quer em colaboração com os de outro local cuja realidade seja algo diferente.

E os Jovens Médicos da carreira hospitalar decerto também se identificam com estes princípios.

Podemos, pois, estar tranquilos em relação às condições assistenciais no futuro porque os hoje Jovens Médicos estão a construir um espaço, notável, onde serão os Médicos de referência de amanhã. E promover e defender este objectivo é, será sempre, um posicionamento político socialmente responsável.

Mas que não chega como construção de um futuro feliz porque essa qualificação tem de fazer parte de outras de igual importância. Como são o defender, interventivamente, a qualidade do viver, a livre participação na gestão do Estado, a criação de massa crítica sobre todos os factores que, hoje como há 100 anos atrás, querem aniquilar ou controlar “por cima” o livre arbítrio e destruir a democracia, a solidariedade, a entreajuda, a igualdade não de género, cor ou opção sexual mas a igualdade em abstracto que afirma o direito de cada um ser o que quer desde que deixe que o outro também o seja. E se estes valores são a base do mundo feliz a que os actuais Jovens têm direito há outros, complementares dessa felicidade e que são hoje melhor percebidos, que necessitam do seu interesse e disponibilidade como as alterações do clima e as migrações que acarretam, as conflitualidades locais que estimulam mais migrações, a intolerância religiosa ou outra que também se acompanha por inevitáveis novas migrações. Vai ser cada vez mais “vital” estar aberto à mudança de hábitos, de convicções, de modelos de relacionamento e de formas de vestir ou despir que estas alterações demográficas trarão como diferenças.

(Estou velho. Sendo para mim difícil ser tolerante desta forma. Mantenho hoje o que pensava e escrevi há muitos anos sobre como os meus preconceitos me condicionam na aceitação da diferença. Continuo a defender o politicamente incorrecto de que quem escolhe um país de acolhimento está obrigado a adaptar-se às regras da vida civil desse país. No privado o migrante actuará como quiser mas no público terá de ser quase igual aos naturais desse país. Se acreditamos, como eu acredito, que quem migra procura um mundo melhor todos têm de proteger esse mundo para que, num futuro mais ou menos próximo, outros migrantes também possam ter esperança em encontrar um país que os aceita, os acolhe e os integra na sua circunstância.)

Ser-se Jovem, como já foi a geração que actualmente tem o poder, significa olhar o amanhã como futuro a construir, um futuro melhor que o presente, feito à dimensão dos seus sonhos, das suas idiossincrasias, da sua autoridade como opinião e vontade. E sabemos como é necessário manter esses valores sob vigilância para que a acomodação não os obscureça ou os altere porquanto se e quando tal ocorrer ter-se-á deixado de ser Jovem.

Voltando a usar o exemplo dos Médicos julgo que é possível que se venham a encontrar numa situação de favor, pelo simbólico que a saúde ainda vai continuar a ter o que implica grande responsabilidade cívica, muitíssimo complexa pela imperiosidade de bem avaliar o valor relativo das pressões quer das vicissitudes dos gestores da sua área de trabalho quer de quem neles verá o último bastião de defesa de um bem-estar partilhado.

Ser-se Jovem é um estatuto. A geração do poder actual e a sua estranha concepção de progresso agora, quando já não são Jovens, está a oferecer ao futuro um espectro de (potencial provável) retorno ao mundo que combateram, a uma realidade social onde o direito de se ser humano será reconhecido apenas a um cada vez menor número de privilegiados. A geração do poder actual pactua com esta mudança sendo cúmplice na reconstrução da desigualdade e da pobreza, mais ou menos generalizadas, que os indignou noutro tempo e os levou a lutar, por vezes com violência, não apenas para acabar com elas mas, principalmente, para evitar que alguma vez se reerguessem.

Essa geração falhou. É agora tempo da que já foi chamada de rasca mostrar que não tinha que ser assim e que sabe e quer fazer diferente.

Melhor, durável, adaptável, sem quaisquer tipos de exclusões ou de privilégios de grupo. E capaz de se autocriticar, de se não perpetuar no poder, de usar os melhores mesmo quando o decisor não faz parte deles.

Porque é melhor ser um menor no seu lugar com dignidade, onde fará a sua parte como construtor de progresso, que um falso maior que só bloqueia esse progresso.