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Internato fora da caixa

Autor: Liliane A. Rocha, médica Interna de MGF (USF S. Domingos de Gusmão)

 

A relação que o médico de medicina geral e familiar (MGF) constrói com a sua lista de utentes é o alicerce da Medicina Geral e Familiar. É uma ligação de confiança que se desenvolve ao longo do tempo, crucial para a prática dos cuidados de saúde primários. É esta mesma relação que o interno de MGF, durante a sua formação, vai estabelecendo com a lista de utentes do seu Orientador de Formação (OF). Note-se que apesar de ser regular a realização de consulta a outros utentes das unidades de trabalho, estes são geralmente contactos pontuais sobretudo motivados por patologia aguda.

Quando iniciei o internato, a minha base de trabalho foi a lista da minha orientadora de formação. Trata-se maioritariamente de população idosa, já seguida e estudada ao longo de 30 anos. São utentes cuja principal língua é o português e com a qual é fácil comunicar. Os entraves existentes na comunicação são sobretudo motivados por patologias associadas ao envelhecimento como a presbiacusia. Como partilhamos a mesma herança cultural torna-se também simples identificar os principais hábitos que poderão ser importantes influenciadores da saúde do indivíduo, como por exemplo os hábitos alimentares, e deste modo adaptar de forma adequada as recomendações de saúde dadas aos utentes.

No último ano de internato, com a ausência do serviço de uma colega, abracei a responsabilidade de dar resposta a duas populações especiais e vulneráveis de outra lista de utentes que não a da minha OF. Deste modo, fiquei responsável durante 9 meses pelas consultas de vigilância dos utentes diabéticos e grávidas. Estes utentes, pertencentes a uma lista mais jovem, apresentam características sociodemográficas distintas da minha lista de trabalho habitual. A existência de muita população de outras nacionalidades leva a uma grande diversidade linguística e cultural. Nem sempre o português é a sua língua materna, tornando a comunicação um desafio, sendo difícil a compreensão das expectativas do utente. Várias são as consultas em que tento transmitir cuidados relevantes chegando ao final com a sensação de que a pessoa não compreendeu o que lhe foi explicado. Mesmo com o apoio de plataformas digitais que nos permitem a tradução e mesmo que se consiga transmitir a mensagem-chave, esta não é a forma de comunicação privilegiada numa especialidade de proximidade e de cuidados longitudinais como a MGF.

Para além da barreira linguística deparei-me ainda com diferenças culturais que implicaram uma aprendizagem sobre crenças e costumes. Por exemplo, os hábitos alimentares podem diferir de forma brusca de acordo com a cultura. Se para uns o pequeno-almoço habitual é constituído por leite e pão, para outros o consumo de arroz e peixe logo de manhã é o que faz sentido. Não será lógico para o utente que as recomendações de saúde vão ao encontro da cultura do médico e não da sua própria, o que poderá até constituir uma limitação na promoção de modificação dos estilos de vida, quando justificado. De igual modo, existem inúmeros alimentos consumidos de forma regular, diferentes daqueles a que estamos mais habituados, e que leva os profissionais de saúde a terem de pesquisar sobre o seu valor nutricional. Estas diferenças culturais implicam uma contínua aprendizagem e necessidade de integração de novos conhecimentos na minha prática clínica. Poderá ser importante adaptar as recomendações e práticas de saúde à cultura do utente, demonstrando algum conhecimento da mesma.

É igualmente importante estar alerta para situações que possam comprometer a saúde individual, como por exemplo, a proteção da descendência em culturas em que é comum a prática da mutilação genital feminina. O médico de família tem aqui um papel primordial na identificação de situações de risco dado o acompanhamento de saúde que realiza à mulher adulta nas consultas de planeamento familiar e gravidez, por exemplo, e posteriormente a vigilância das crianças na consulta de saúde infantil. Os cuidados de saúde primários, em articulação multidisciplinar, poderão ter uma ação preponderante na prevenção desta prática nas gerações futuras.

Concluindo, esta multiplicidade cultural revelou-se uma das experiências mais enriquecedoras da minha formação. A formação específica, seja MGF ou outra, deve cada vez mais ser construída em aberto, promovendo ao interno o contacto com contextos diferentes do seu habitual. É relevante uma maior atenção nos anos de formação para lidar com uma população cada vez mais heterogénea em termos culturais, linguísticos, e até de identidade de género. Este aspeto será certamente muito útil e influente no exercício da profissão médica que tal como a sociedade é atualmente globalizada e não limitada à geografia do país.