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Elysio de Azevedo e Moura(1877-1977)

    Homenagem

    Escrever o In Memoriam de alguém tão reconhecidamente singular e tão saudosamente lembrado, é tarefa que honra, mas que se torna manifestamente difícil de ser diferente dos inúmeros testemunhos e textos que sobre tão unânime figura já foram escritos.

    Mais evidentes é essa dificuldade ou impossibilidade, quando quem agora o escreve só contactou uma mão pouco cheia de vezes com tão celebrada figura, embora em situações muito concretas e marcantes. Mas por assim terem sido e apenas por isso, são agora a razão da força para me abalançar a este acto de coragem – falar de alguém de quem já se disse tudo ou, no mínimo, quase tudo.

    Não faria qualquer sentido começar por esta ínfima ponte de contacto, de real insignificância na vida desta destacada e inesquecível personagem, pelo que se escreverá este In Memoriam da forma habitual e tradicional, pese embora ele se refira a uma pessoa sui generis que bem mereceria ser lembrado como ele era e sempre foi – diferente e único. Mas, por certo, ele aceitaria com a sua bondade, o seguirmos a tradição.

    Os dados pessoais

    Elysio de Azevedo e Moura nasceu em 30 de Agosto de 1877 na cidade de Braga, filho de José Alves de Moura[1] e de Emília da Costa Pereira de Azevedo e Moura[2]. Instrução Primária e Liceal, em Braga. Em 15 de Junho de 1893 matriculou-se na Universidade de Coimbra em Filosofia[3], onze dias depois também em Matemática e em 13 de Outubro de 1895, em Medicina.

    Casou com Celestina de Araújo Salgado Zenha[4], filha de Francisco Salgado Zenha e de sua mulher e prima Rita de Araújo Salgado Zenha.

    Segundo o que consta nos registos da Universidade de Coimbra, era Bacharel em Filosofia em 10 de Julho de 1895, Bacharel em Medicina em 13 de Junho de 1899, Licenciado em Medicina em 12 de Março de 1901 e Doutorado em 27 de Abril de 1902.[5]
    Nestas notas biográficas da Universidade de Coimbra, Elysio de Moura é sempre referido como um aluno distinto, premiado em diversos anos do seu curso e uma das figuras mais prestigiosas da Medicina portuguesa.

    Após o doutoramento regeu, como substituto, as cadeiras de Patologia Interna (1902-1905) e Propedêutica Médica (1905-1907); já como Lente, Propedêutica Médica (1907-1911) e desde aí como Professor Catedrático as cadeiras de Clinica Neurológica (1911-1912), Neurologia (1912-1943), Clinica Psiquiátrica (1914-1943) e Psiquiatria (1943-1947).[6]

    No seu percurso universitário exerceu os cargos de Secretário da Faculdade de Medicina (1903-1910); Director do Gabinete de Radioscopia e Radiografia (1910); Director do Laboratório de Radioscopia, Radiografia e Electroterapia (1911); Director da 1ª Clínica Médica (1911); Director de Clínica Neurológica (1911); Director de Clínica Psiquiátrica (1913)[7]; Director de Serviço de Clínica Neurológica (10.11.1926); Director de Serviço de Clínica Infantil (10.11.1926); Director de Clínica dos Hospitais da Universidade (15.01.1937). Proferiu a sua última lição em 28.06.1947. Aposentado por limite de idade em 30.08.1947.

    Elysio de Mouraa notabilizou-se no ensino e investigação da Psiquiatria e Neurologia, tendo contribuído, no início da República, para a manutenção do ensino da Medicina na Universidade de Coimbra, que esteve em risco de passar para as novas Faculdades de Lisboa e Porto.[8]

    Rapidamente se espalhou a qualidade e eficácia do seu ensino e dos seus certeiros diagnósticos. A Coimbra começaram a chegar doentes de todas as partes do Continente, da Madeira e dos Açores, de Espanha e até do Brasil.

    Elysio de Moura, já em 1911, tentou que se construísse um Pavilhão exclusivo para as doenças mentais e mais se empenhou nessa luta à medida que os doentes aumentavam e recorriam à sua ajuda. Apesar de todo o seu empenho e luta persistente, só em 1944, três anos antes da sua jubilação, é que esse Pavilhão (Manicómio de Sena) foi inaugurado, sendo Elysio de Moura o seu primeiro Director.

    Elysio de Moura deixou pouca obra publicada, o que se pode explicar e compreender, pela sua fácil e fluente oratória e pelas limitações que ele colocava à palavra escrita. Confessou um dia que só podia escrever de manhã, em jejum, ou depois de beber a sua água quente que constituía invariavelmente o seu ‘café’. Depois de ter comido fosse o que fosse, não voltava a olhar para qualquer letra impressa, manuscrita ou dactilografada, pelo menos enquanto fosse dia.[9]

    Mesmo assim deixou inúmeros relatórios médico-legais no campo da Psiquiatria forense, para tribunais de diversas comarcas. Apresentou diversas comunicações em congressos nacionais e estrangeiros. Deixou alguns trabalhos publicados em revistas científicas: Estudo crítico e experimental sobre o fósforo urinário (1900); Nota sobre um caso de tétano agudo, seguido de morte (1901); Semiologia dos reflexos (Coimbra, 1901); A toxidez da urina, Vol. I e II (Coimbra, 1902)[10]; Demente que aos 77 anos testou… sem dar por isso e que aos 79 anos casou … também sem dar por isso (1924); Anorexia mental (Coimbra, 1947); Anotações a um parecer médico-legal (Braga, 1969).

    Segundo Correia de Oliveira que o substituiu após se ter jubilado, quando Elysio de Moura se dedicou à Neurologia já os grandes obreiros do edifício neurológico, Romberg, Charcot, Duchenne de Boulogne, Hughlins Jackson, Gowers, Friedreich, Oppenheim, Babinski, Dejérine e outros tinham assentado os seus alicerces e o mesmo se passou com a Psiquiatria. Mas se não inventou ou descreveu o que já estava descoberto, teve a qualidade e o mérito de interpretar e clarificar o que ainda não era claro. Conhecedor de todos esses estudos e descobertas (diagnosticou o primeiro caso em Portugal de Doença de Wilson)[11] foi um grande Mestre, dando lições magistrais em todos esses sectores, consequência lógica da exactidão de diagnóstico, resultante da sagacidade e do poder de penetração do seu espírito, que lhe permitiam distinguir subtilmente o orgânico do funcional e ainda o funcional puro do psicogénico.[12]

    Tal como era irrequieto, também era desordenado – incapaz de organizar um ficheiro, catalogar ou coordenar, fosse o que fosse. A sua prodigiosa memória era o ficheiro, o catálogo e o ‘computador’ de que se servia, a tempo e com sucesso. Mas, por isso mesmo, não fez Escola, nem pôde servir a pedagogia com isenção, dentro do seu múnus, porque o seu bom coração o compelia a ser mais benévolo do que rigoroso.[13]

     

    Sociedades a que pertenceu, cargos que desempenhou, condecorações e honrarias:

    Sócio efectivo do Instituto de Coimbra.

    Membro da Association des Médecins Aliénistes et Neurologistes de France et des Pays de Langue Française,

    Société MédicoPsychologique de Paris,

    Académie Internationale pour le Progrès dos Sciences Médicales,

    Deutsche Gesellschaft für Gerichtliche Soziale Medizin und Kriminalistik, etc.

    Membro da Comissão de Honra da Union Médicale Latine.

    Sócio honorário da Société de Médecine Mentale de Belgique.

    Inaugurou o ensino de Neurologia em 1907, num curso livre que organizou na Faculdade, e que pela reforma de 1911 passou a constituir a cadeira de Clínica Neurológica. Criador do ensino efectivo de Neurologia e Psiquiatria em Coimbra.

    Regeu o curso de Psiquiatria Forense desde 1918-1919.

    Vice-Presidente da Direcção do Asilo da Infância Desvalida de Coimbra em 1919 e Presidente a partir de 1922.

    Membro da Comissão Administrativa da Construção do Manicómio Sena em 14.8.1923. Membro da comissão encarregada de organizar as clínicas psiquiátricas e a assistência aos alienados, em 5.9.1928.

    Médico alienista do Conselho Médico-Legal de Coimbra desde 13.2.1919 e seu Presidente desde 2.2.1935.

    Membro da Junta Geral do Distrito de Coimbra (Até 1936).

    Foi o primeiro Bastonário da Ordem dos Médicos (1938).

    Procurador à Câmara Corporativa em 1939.

    Redactor da revista Movimento Médico.

    Grande Oficial de Mérito Científico Literário e Artístico da Ordem de Santiago da Espada em 24.5.1947.

    Representou a Faculdade de Medicina, a Universidade e o País em vários congressos como os de Medicina Geral de Londres e Budapeste, os de Neurologia e de Psiquiatria de Paris, Bordéus, Lille, Limoges, Antuérpia, Gand, Liège, Bruxelas, Basileia, Neuchâtel, Lausanne (2), Genéve (2), Berna, Zurique, Casablanca e Barcelona[14]

    Foi colocado o seu busto, da autoria de Francisco Franco, na Clínica Psiquiátrica instalada no antigo Manicómio Sena e foi condecorado com a Grã-Cruz da Ordem de Benemerência. (08.05.1960)

    Homenageado da Universidade em 1967, ocasião em que lhe foi oferecida uma medalha.

    Presidente honorário da Sociedade Portuguesa de Neurologia e Psiquiatria (1971).

    Primeiro Bastonário Honorário da Ordem dos Médicos em 4 de Junho de 1977.

    Grã-Cruz da Ordem de Santiago da Espada em 12.6.1977.

    Medalha de ouro da cidade de Coimbra, atribuída postumamente em 30.8.1977. com a sua efígie, da autoria de Cabral Antunes.[15]

    Foi-lhe dedicado o Vol. XXVII-XXVIII do Arquivo Coimbrão (1979).

    O Asylo da Infância Desvalida passou a  chamar-se  Casa da Infância Dr. Elísio de Moura a partir de 1979.[16]

     

    Elysio de Moura na primeira pessoa enquanto primeiro Bastonário da Ordem dos Médicos

    Referindo-se à sua eleição como Bastonário, entre outras coisas, afirmou que «Além disso, como bem o sabem quantos comigo privam, o meu feitio é ingènitamente avesso a ocupar um posto de exibição ou uma posição de relevo. Por estas razões e outras que, por brevidade, omito, ninguém podia ter ambicionado menos que eu tão excepcional honraria, nem tê-la aceitado – digo-o sem hipócrita humildade – com mais penoso constrangimento».

    Endereçou depois palavras de louvor aos colegas que «pela palavra falada ou escrita, porfiaram na organização do Sindicato Nacional dos Médicos, como instrumento de irrecusável indispensabilidade para o alteamento, que instantemente urge promover, do decaído prestígio da nossa Classe, para a elevação moral de uma profissão de recrescente importância social. Vinculados pelo estuante anelo de ver atingido este nobilitante objectivo, coordenemos os nossos esforços, demo-nos fraternalmente as mãos, todos os que pertencemos aos primeiros Corpos dirigentes da Ordem, onde me é indizivelmente grato encontrar algumas das mais gradas e marcantes figuras da Medicina portuguesa da actualidade. Com extrema consolação verifico que os Vogais do Conselho Geral da minha presidência, mesmo os mais novos, possuem um passado que constitui a mais celsa garantia de que se manterão intransigentemente fiéis aos grandes e universais princípios reguladores do exercício da nossa profissão e invencivelmente refractários a influições que, mesmo ao de leve, infrinjam as normas do pundonor mais inflexível.(.) Ralenta-me a convicção de que viveremos nas mais caroáveis relações. Perfeitamente compenetrados da relevada importância da sua missão e inspirados, luminosamente, pelo sentimento das suas responsabilidades, continuarão a desenvolver, como membros do Supremo corpo dirigente da Ordem, uma actividade de tanta produtibilidade que será tomada como exemplo pelos seus sucessores. Pelo que me diz respeito, já que idêntica aspiração me é vedada, ficarei contente se, como espero, findas as minhas funções presidenciais, não tiver de ouvir as recriminações da minha consciência.

    O Conselho Geral esforçar-se-á por patentear continuamente o seu fremente desejo de promover a confraterna solidariedade dos médicos honestos de Portugal, para salvaguarda e incremento da sua autoridade científica e do seu crédito moral».

    O Conselho Geral empenhar-se-á em que não esmoreça a acção veladora, doce e firme, sem tibieza nem arrebatamento, que aos Corpos dirigentes compete exercer sobre a forma como são respeitados esses preceitos, para – com inexorabilidade que não exclua a prudência – vermos dissiparem-se progressivamente os multiformes fautores diminuentes da honorabilidade profissional».[17]

    (.)Torna-se necessário contrariar quaisquer tentativas de exploração deprimente da actividade do clínico, empreendidas pelos organismos oficiais ou particulares que, sob o pretexto de assistência aos pobres, favoreçam indevidamente pessoas mais ou menos abastadas. (.) a redução do número de alunos que em cada ano se matriculam no Curso médico.(.) Uma mais equilibrada distribuição dos médicos portugueses pelos núcleos populacionais da metrópole e do nosso Império Colonial (.) Evitar a miséria económica do clínico, porque ela pode ser o tenebroso prelúdio do seu pauperismo moral. (.) O Conselho Geral proporá ao Governo uma equitativa remodelação da vigente lei tributária. (.) O Conselho Geral volverá, com igual desvelo, a sua atenção para os doentes sem médico e para o médico pobre sem doentes.(.)      

    -exprimir o voto de que os futuros médicos portugueses recebam, durante o seu tirocínio escolar, uma instrução científica, literária e filosófica cada vez mais prestante (former un esprit n’est pas la même chose que le remplir).[18](.) Forçoso é temperar os ânimos juvenis para os rasgos das mais nobres acções e, simultâneamente, para as decepções e agruras da nossa profissão, tais como: as preocupações inquietantes; as aflitivas hesitações; as horas negras, dramáticas, de assónia sobressaltada pelo receio de uma omissão ou por uma decisão arriscada; o acabrunhamento, o paralisante desânimo ante a impotência da nossa arte científica; a dúvida entorpecedora e torturante, de tendências auto-acusadoras, a acabar num tranqulizante exame de consciência; a ingratidão insólitamente manifestada pelos que querem calotear o médico (.)

    Mas foram precisamente os médicos – como direi? desmandados, desregrados – que, pelos seus actos reprováveis e impuníveis, de mero utilitarismo e grave menosprezo dos princípios mais elementares da moral cristã, fomentaram sem o desejarem, claro está, a criação da Ordem.

     

    Elisio de Moura na terceira pessoa

    De facto, um invulgar senso clínico, aliado a penetrante e rápido poder de diagnóstico diferencial, permitiam-lhe sucessos diários, tanto em clínica geral – faceta algo esquecida –  como em neuropsiquiatria, especialmente no vasto campo das neuroses, em particular no âmbito da chamada histeria. Só a partir da certeza do diagnóstico, a certeza do êxito da sua intervenção psicoterapêutica.

    Três aspectos o fadavam para um lugar único em psiquiatria forense: integridade moral exemplar; profundos conhecimentos médicos gerais, especializados e humanos; lógica impecável e rigorosa, servida por poder superior de análise e de síntese.[19]

    No decurso de tentativas de encontrar uma redacção rigorosa, clara, médico-legal, mas que estava a sair longa, vinha a sua intervenção inesperada: Meninos – todos os membros do Conselho eram assim tratados – ‘’ escreva lá e veja se está bem’’ Ditava meia dúzia de palavras que substituíam todas as outras com a grande vantagem da concisão.[20]

    Falámos-lhe da paralítica que saltou da cama, lépida e curada, quando ele simulara que iria deitar-se a seu lado. Prontamente reagiu: ‘’Impossível, deontologicamente estava-me vedado tal processo’’. Passados instantes, conta-nos que, «aparentemente, fizera pior, avançara de jarro na mão, brandindo-o sobre a cabeça de um doente que há dois meses não saía da cama e que fora inacessível aos seus métodos usuais de acção psicoterapêutica, mas que não resistiu à bem encenada ameaça de morte por fractura craniana, saltando antes que o jarro o pudesse atingir, coisa impensável, mas em que o doente acreditara. Havia prometido à família que desceria com ele à sala, de braço dado e o maroto não permitiu que eu cumprisse o prometido, pois chegou primeiro do que eu». [21]

    O Prof Elysio de Moura encarna na sua máxima plenitude, a imagem do médico, tanto na sua versão tradicional como no ideal humanista do Homem completo – o Homem médico. Aliando o saber, a capacidade técnica à cultura geral, integrando a práctica clínica em actividades sociais, reunindo, numa mesma pessoa, a sabedoria, o timbre ético do carácter, a dádiva plena ao objecto do seu labor – os enfermos e as crianças desamparadas.

    Agia pela sua presença – olhar penetrante como jamais vi noutra pessoa, um certo ar tonitruante e um tom espectacular – a que a seriedade dos propósitos tirava quaisquer laivos de menor autenticidade que poderia sugerir, superficialmente, às primeiras impressões. Agia sobretudo pela palavra – fácil, fluida, incisiva, colorida, vibrante, comunicante, aliciante… Era, em suma, um genial psicoterapeuta, de que foi efectivamente o verdadeiro percursor entre nós, como também da psicosomática.

    Além disso e sendo professor catedrático de neurologia e de psiquiatria, sempre amou a medicina interna e nunca deixou de a exercer também.

    Teve detractores, sim, como todo aquele que muito vale.[22]

    Dele se disse que quando falava, muitas vezes parecia que o pensamento ia atrás das palavras, tão fluentes estas lhe saíam, noutros instantes abrandava o ritmo, sabendo tirar partido de pausas e silêncios. Mas nas escassas obras publicadas, Elysio de Moura revelou-se um torturado da forma, para desespero dos tipógrafos, alterando, emendando, substituindo, constantemente as provas dos seus livros, dados à prova depois de jubilado.[23]

    Senhor de invulgar inteligência, vivacidade de espírito, memória prodigiosa, arguto na análise das pessoas e das coisas, dotado de um poder de persuasão irresistível, de argumentação convincente e de réplica fácil e certeira, a estes talentos alia um aspecto físico de psiquiatra carismático.[24]

    Na biografia de Elysio de Moura tudo é transparência e, simultaneamente, luminosa excepção. Homem simples, daquela simplicidade que, por tão natural e desanuviada, se faz ou parece excêntrica; homem bom, daquela bondade que, por se desconhecer como tal, embora sejam sem conto as obras que a ilustram, está para lá da virtude; médico singularíssimo, destoante de todos os padrões, mesmo os que se têm por exemplares, de uma agudeza, quase diria de uma acutilância que, por tanto surpreender, faz evocar as ambiguidades de que a arte médica sempre se nutriu: inspiração, instinto, subtileza psicológica, magia pessoal, dons, enfim, que estabelecem obscuras correntes entre o assistente e o assistido. E Mestre, Mestre por inteiro: sem códigos de ensinança, sem pautas normativas, e menos ainda, sem catedráticas severidades, uma aula que fosse bastando para que o discípulo sentisse a personalidade que tinha pela frente, um mero caso clínico sobrando para que o discípulo aprendesse que ofício, responsabilidade e fascínio se preparava para assumir. E, enquanto homem, médico ou Mestre, uma cabeça erguida, um olhar em fogo, uma dignidade altiva de o ser, uma consciência limpa, um visceral desprendimento da vã cobiça. Um estar além e aquém das efémeras coisas, sem delas, porém, já mais se arredar, já que é nelas que o mundo habita.

    Assim, por tão rica mas tão nítida, se esgota a legenda.[25]

    Às aulas do Dr. Elysio ninguém faltava, todos interessados pela sua exposição «vivíssima, eloquente, estralejante, em lampejos sintéticos porventura desconcertante, ma sempre superiormente inteligente e crítica»[26]

    Despido de ambições de riqueza, limitando-se a viver modestamente, teve o natural desejo de usufruir uma casa sua, que imediatamente ele e sua abnegada esposa dariam ao Asilo. E, além dessa casa, tudo que conseguiu ao longo de muitos e operosos anos de clínica foi desde logo pertença do asilo que hoje tem o seu nome.[27]

    Era um clínico arguto, de espantosa perspicácia e inultrapassável senso clínico.

    Foi na minha vida clínica que do Mestre recebi as mais apreciadas e proveitosas lições.

    Por sua determinação passou apenas a receber crianças do sexo feminino, quando das onze crianças iniciais passou às duas centenas.[28]

    Deve-lhe também a Faculdade os esforços prosseguidos durante decénios, mas só concretizados tardia e parcelarmente, através de dificuldades de vária ordem e de incríveis contestações, para que o chamado Manicómio Sena viesse a ser a sua Clínica Psiquiátrica, um centro de ensino, de tratamento e de investigação das doenças mentais, que tanta falta lhe fazia.

    Talvez lhe deva até a própria sobrevivência na época crítica em que, criadas as Faculdades de Medicina de Lisboa e do Porto, pelo Governo Provisório da República em 1911, aos Professores de Coimbra foram oferecidas atraentes possibilidades de transferência. Elysio de Moura recusou-se a abandonar Coimbra, mesmo que a Faculdade desaparecesse. O seu exemplo prestigioso e a sua persuasão entre os colegas, contribuíram seguramente para conjurar o real perigo que a Faculdade correu.[29]

    Elysio de Moura, despojado voluntariamente dos bens materiais, quis viver como um pobre, longe dos prazeres e das ambições do mundo e como um pobre quis partir. Foi por isso que, em data recente, de acordo com as suas convicções, num gesto cheio de intenção, durante singela e recatada cerimónia, se fez cingir com o cordão de Francisco de Assis.

    Homenagem justa, a um homem justo. Porém, arredado como sempre, pela sua modéstia quando vivo e agora também pela sua partida, o homenageado não estará presente. No entanto, ainda que sem o conforto da sua presença física e apesar da roda do tempo o ter levado agora, a festa será igual. Nisto reside, aliás, o seu maior elogio. É que Elysio de Moura é já um símbolo que habita o coração e a memória de todos nós,[30]

    Vim para o Asilo da Infância Desvalida em 1954. Durante 23 anos convivi, como ninguém, com o senhor doutor Elysio de Moura. Tornei-me, à medida que as necessidades o requeriam, sua ‘Enfermeira’ particular. Com isso, posso contradizer a conhecida afirmação: ‘’Ninguém é herói para o seu criado de quarto’’! Pois comigo sucedeu o contrário: à medida que o tempo avança, a figura do senhor doutor Elysio de Moura torna-se para mim cada vez maior. É como aquelas silhuetas que o sol poente projecta para diante na moldura da paisagem.

    Temos de compreender que as almas grandes não são como as nossas, mesquinhas, apoucadas, muito presas ao que é pequeno. O Doutor Elysio de Moura, não. Por isso tinha as suas rarezas. Saía fora da série do comum dos homens, mas, por ser grande, é maior que eles.[31]

     

    Obra Social e Humanitária

    Deixo para o fim a outra parte importante da sua vida, aquela que durante anos se sobrepôs à sua vida de professor e médico e à qual se entregou por inteiro de coração aberto, sempre apoiado por sua esposa, até a morte a levar.

    Embora tenha iniciado essa entrega total ao bem, por nomeação, desde logo assumiu essa função com inteiro amor e entrega. De facto o Asylo da Infância Desvalida «teve a sua origem na “Sociedade de Beneficência Protectora da Infância Desvalida”, fundada em 9 de Julho de 1835 pela Reitoria da Universidade de Coimbra, cabendo a presidência a um professor universitário[32]. Tal cargo seria exercido por Elísio de Moura a partir de 1922»[33]

    Quarenta e cinco anos depois, em 11 de Agosto de 1967, passou a chamar-se ‘Casa da Infância Doutor Elysio de Moura, mudança inteiramente merecida já que Elysio de Moura desde que assumiu a sua direcção, cuidou daquela casa e das suas meninas com o maior amor e carinho e com uma dedicação total àquela louvável obra.

    Apesar da sua entrega total, com o aumento de crianças, aumentaram enormemente os custos de manutenção daquela Casa e tornava-se necessário encontrar outros apoios.

    Aproximava-se a Queima das Fitas e então a ideia luminosa surgiu pela mão dos estudantes quintanistas de medicina em 1931/32, que se lembraram de criar umas minúsculas pastas para vender a familiares dos estudantes e comerciantes.

    As pequeninas asiladas seguiam pela Baixa vendendo pastazinhas com fitas e nas cores das várias faculdades.

    Radiante, mais feliz do que elas – que gozavam o prazer da liberdade – lá ia o Pantaleão[34] fazendo os impossíveis para angariar o mais possível para a meritória obra de amor e benemerência que tantas meninas acarinhou e tornou aptas para serem úteis e felizes.

    E assim nasceu uma nova tradição na vida estudantil coimbrã.

    Todos os quintanistas de todas as Faculdades a ela aderiram não só nesse ano, como em todos os seguintes. A ideia, baptizada de Venda das Pastas, consistia em vender o máximo possível de miniaturas das pastas de estudantes, com as várias cores das fitas indicativas das várias Faculdades.[35]  Cada quintanista, voluntariamente, ia buscar duas das meninas do Dr. Elysio de Moura nos seus uniformes domingueiros – saia azul de pregas, blusa cor-de-rosa, soquete branco e sapatinho preto – que durante todo o dia na Baixa e pela cidade vendiam as pastas a quem passava e ao comércio em geral. O dia em que se procedia à Venda das Pastas tinha sido bem escolhido, a segunda-feira entre a Garraiada e o Cortejo, dia marcado pela Verbena que habitualmente se realizava no Jardim Botânico e que, fundamentalmente, era um chá dançante.

    E foi por causa desta Venda das Pastas que eu tive o privilégio de conhecer pessoalmente Elysio de Moura já com 80 anos. Tendo sido eleito presidente da Comissão de Beneficência da Queima das Fitas[36]pude contactar com ele várias vezes acerca da próxima Venda das Pastas.

    De todas as vezes senti a sua genuína humanidade, o seu fulgor e ainda aquele olhar penetrante e iluminado e no último dia em que o contactei para lhe dar conta do valor que tínhamos conseguido e iria ser entregue ao Asylo  da Infância Desvalida, ele mostrou-se surpreendido pelo valor obtido e acrescentou, rematando – Entreguem só o que habitualmente se tem conseguido e o resto distribuam a outras Obras.[37] Era, indubitavelmente, um homem bom, justo e solidário.

    Doze anos depois com a crise académica de 69, o luto académico e o consequente cancelamento de todo o programa da Queima das Fitas, o Professor Elísio de Moura  contactou com a Comissão da Queima, a quem mostrou a sua preocupação pela falta que a receita da venda das pastinhas faria à sua obra de beneficência, pelo que pedia que as suas meninas não fossem prejudicadas.

    E foi aberta uma excepção e as “meninas do Dr. Elysio de Moura” saíram à rua na segunda-feira, devidamente acompanhadas pelos quintanistas que tinham as batinas fechada, as capas pelos ombros e as fitas recolhidas dentro das suas pastas, em sinal de luto.[38]

    Infelizmente esta humanitária tradição da Queima das Fitas parece vir a perder importância devido a alterações no seu programa e em aparente desinteresse humanitário, como se poderá depreender de informações fidedignas. O número de estudantes que se disponibilizam para acompanhar as meninas tem vindo a diminuir todos os anos e em 2013, apenas 20 quintanistas se disponibilizaram para a Venda das Pastas, numa universidade que nesse ano andou pelos 22.000 alunos e onde, seguramente, mais de 1.000 serão quintanistas.[39]

    Contudo, a Venda da Pasta ainda se mantém, embora com apenas 26 meninas, acompanhadas cada uma delas por 3 ou 4 quintanistas. O Dia da Venda das Pastas também mudou e tem sido, nos últimos anos, na 6.ª feira, dia seguinte à Serenata Monumental. A Verbena consiste agora num lanche e num pequeno espectáculo organizado pela Comissão da Tradição da Queima das Fitas, destinado às crianças da Casa da Infância Doutor Elysio de Moura que participam na Venda das Pastas e também para todas as crianças da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra (APCC).[40]

    Pese embora o quase desaparecimento de tão humanitária, antiga e tradicional Venda das Pastas, é reconfortante saber que aconteceu o que o Prof. Elysio de Moura me disse na última conversa – distribuam também pelas outras Obras. Parece ser o que agora se faz e lhe daria imensa alegria.

    Entretanto, para perpetuar seu nome e também para angariar fundos, foi criada a Casa-Museu Elysio de Moura, que deve abrir ao público no princípio de 2018. Já foi restaurada uma das telas do antigo Colégio de Santo António da Pedreira – A Adoração dos Pastores – aguardando restauro  mais 14 telas dos sec. XVII e XVIII.[41]

    Espera-se que as visitas à Casa-Museu e a venda das Pastas aos visitantes, para além de perpetuar a memória do insigne e bondoso Mestre, sejam uma fonte constante de apoio a tão meritória Obra.

     

    O Desprendimento e a Entrega

     Elysio de Moura, simples em tudo, nunca procurou lugares de prestígio ou honrarias e dedicou grande parte da sua existência a esta Obra. A sua sensibilidade, o trabalho e a obra que desenvolveu, testemunham que a sua ação marcou, indubitavelmente, um homem bom. Doou-lhe a maior parte dos seus bens e em todos esses anos que a dirigiu ali deixava o dinheiro que com muito trabalho ganhava como médico. Duma casa velha que encontrou, com apenas onze crianças, mandou reconstruir o edifício e passou a poder recolher 230.[42]

    No testamento feito em 25 de Abril de 1977, Elysio de Moura declarou «querer que a herdeira instituída ‘’Casa da Infância Dr. Elysio de Moura’’, que lhe é tão querida e à qual ele, testador e sua falecida esposa, sempre dedicaram a maior afeição e todo o seu esforço, canseira e trabalho e para cuja manutenção e sobrevivência nunca se pouparam a sacrifícios de qualquer ordem, continue a ser como até ao presente, uma Instituição de natureza particular e que as meninas nela recolhidas sejam assistidas e educadas catolicamente, amparadas, protegidas, tratadas e orientadas com todo o carinho, desvelo e cuidado.[43] 

    Elysio de Moura morreu 73 dias antes de completar os 100 anos. Foi uma vida longa e rica, como aquelas que Rainer Maria Rilke chamava de grandes mortes e que Adriano Vaz Serra chamou de morte por amadurecimento, se considerarmos o fulgor do seu espírito, a dádiva que de si fez, o desprendimento em relação aos bens materiais, a sensibilidade perante os outros, o trabalho e obra que desenvolveu, enfim, tudo quanto foi característico do seu modo de ser no mundo.

    Um Homem Grande no saber, na bondade e no trato.

    Carlos Vieira Reis

     

    [1] Bacharel em Teologia, professor e depois Reitor do Liceu de Braga.

    [2] O quarto filho dos dez que o casal teve.

    [3] Ainda com 15 anos de idade.

    [4] Sobrinha paterna do 1.º Barão de Salgado Zenha em Portugal e 1.º Barão de Salgado Zenha no Brasil, sem geração. Falecida em 1945 no Rio de Janeiro.

    [5] Memoria Professorum Universitatis Conimbrigensis, com a autorização do Prof. Doutor Augusto Rodrigues, editor literário.

    [6] Ibid.

    [7] Não foi Elysio de Moura o primeiro professor destas especialidades. No que respeita à Psiquiatria o seu ensino iniciou-se em 1912, no semestre de Verão, como cadeira facultativa e entregue em acumulação ao Prof. António de Pádua que a dirigiu até 1914, ano em foi entregue também em acumulação a Elysio de Moura

    [8] Deve-se a si e a Daniel de Matos, não ter sido extinta a Faculdade de Medicina de Coimbra em 1911.

    [9] Carminé Nobre, Reportagem da sua última lição,1948-141 p.

    [10] No Acto de Conclusões Magnas e na dissertação do I Volume obteve a informação de Mérito literário de Muito Bom. Na Lição livre apresentou “A linguagem articulada e a linguagem escrita. Afasia”. Foi aprovado por unanimidade com Muito Bom.

    [11] Doença hereditária autossómica recessiva cuja principal característica é a acumulação tóxico de cobre nos tecidos, principalmente cérebro e fígado, o que leva o portador a manifestar sintomas neuropsiquiátricos e de doença hepática.

    [12]  Citado em Adriano Vaz Serra, Elysio de Mora, Anotações sobre a sua vida e obra, p. 7 e 8.

    [13] Alberto Costa, Elysio de Moura.O Mestre, o Amigo eo Filantropo.Testemunhos, p. 51

    [14] Ibid p. 5

    [15] Adriano Vaz Serra, Elysio de Mora, Anotações sobre a sua vida e obra, p. 20

    [16] Foi sempre auxiliado nesta tarefa pela sua dedicada esposa, D. Celestina de Araújo Salgado Zenha.

    [17] Faziam parte do Conselho Geral os Professores Drs. Américo Pires de Lima (Porto), e Lúcio de Almeida (Coimbra) e os Drs. Castro Caldas (Lisboa) e Fernando Correia (representante da Direcção Geral de Saúde).

    [18] E justificava esta necessidade de educação dada a «conturbada hora que passa, tão falha de espiritualidade, é de um sôfrego utilitarismo. Caracteriza-a um calamitoso e estonteador rebaixamento de costumes».

    [19] Luis Duarte-Santos, Mestre Elysio de Moura. Aspectos da vida do Médico, do Professor e do Psiquiatra Legista, Testemunhos, p.59

    [20] Ibid, p. 60

    [21] Ibid,  p.57

    [22] Henrique Barahona Fernandes, A aura de numinoso de um grande Médico, Testemunhos, p 63

    [23] Manuel Ramos Lopes, Elysio de Moura. Mestre de muitas gerações, Testemunhos, p. 69

    [24] Frederico de Moura, Recordando o Prof. Elysio de Moura, Testemunhos, p 78

    [25] Fernando Namora, Prof. Elysio de Moura,Ttestemunhos, p. 79

    [26] Fernando Valle, Doutor Elysio de Moura, Homenagem Nacional a Elysio de Moura –Testemunhos, p. 115, citando Barahona Fernandes nas palavras proferidas na Última Aula do Prof. Elysio de Moura. Talvez por isso, tenha dito aos alunos que – Não lhes aconselho qualquer livro. Porque uns tentam sondar o impenetrável, outros … são um chorrilho de asneiras. Também citado por Vasco de Campos a p. 42.

    [27] Augusto Vaz Serra, Elysio de Moura. O Professor, o clínico e o homem, Testemunhos, p 106

    [28] Joaquim Antunes de Azevedo, Professor Elysio de Moura, Testemunhos, p. 39

    [29] Sobral Cid e Egas Moniz aceitaram o convite. A. Tavares de Sousa, Elisio de Moura, Valor nacional, Testemunhos, p. 111

    [30] José Telo de Morais, Professor Doutor Elysio de Moura. Justa homenagem, P. 73

    [31] Irmã Maria da Ressurreição, Os homens grandes são assim, Testemunho, p. 25

    [32] Ocupa o edifício do Colégio de Santo António da Pedreira, fundado em 1602. Deve o seu nome ao instituto de ensino criado pelos frades da província franciscana de Santo António da Observância e ao local onde veio a ser erguido, uma antiga pedreira da Alta da cidade. Viria a funcionar durante duzentos e trinta e dois anos.

    [33] Diário de Coimbra de 07/05/2013

    [34] Henrique Pereira da Mota

    [35] Estas pastas eram feitas no Asylo, pelas meninas. Todas elas continham alguns poemas de vários poetas e antigos ou actais estudantes.

    [36] Carlos Manuel Vieira Reis (M), Maria Georgette dos Santos Goucha (D), Maria Manuela Pascoal Dias (C), Edna Maria Sousa Pontes (L), Maria Augusta Azevedo da Fonseca (F).

    [37] Esse ano a Verbena realizou-se, por minha proposta, no Jardim da Sereia e para além das orquestras Caravana e TAUC, também a internacional Maxim Saury e pela primeira vez se realizou um espectáculo de ballet com Fernando Lima e Águeda Sena e alunos da sua Escola de Bailado. Pagas todas as despesas (18.828$50), foram entregues à Comissão Central 42.624$50, destinados ao Asilo da Infância Desvalida.

    [38] Maria José de Figueiredo Carmona da Mota, “Testemunhos”, 1997, distribuição restrita a familiares e amigos.

    [39] Diário de Coimbra de 8/5/2013.

    [40] Ana Rita Rigueira Montezuma da Sá Marta, A Praxe Académica na Universidade de Coimbra, Mestrado de Política Cultural Autárquica, Faculdade de Letras da UC, 2010/2011

    [41] Com o apoio da Fundação Millenium.

    [42] Nunes, M., Estátuas de Coimbra. Coimbra, GAAC – Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, 2005 Pg. 146-148.

    [43] Joaquim Antunes de Azevedo, Prof. Elysio de Moura, Testemunhos p. 40

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