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Debate: O estado do SNS e o SNS do Estado

Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos e Isabel Vaz, CEO do grupo Luz Saúde, debateram o estado do SNS e o SNS do Estado, numa iniciativa integrada na 11ª edição do ciclo de conferências “Olhares Cruzados”, organizado pelo jornal Público e pela Universidade Católica do Porto. A moderação ficou a cargo de Pedro Pita Barros, professor na Nova School of Business and Economics. Os intervenientes concordaram na necessidade de maior investimento no Serviço Nacional de Saúde (SNS), na importância da qualidade da formação médica e na relevância da adaptação da medicina às novas tecnologias. Ponto de divergência foi o tema das carreiras médicas e das suas discrepâncias entre o setor público e o setor privado.

Isabel Vaz inaugurou o debate, apontando que o aumento da despesa no setor da saúde está fortemente correlacionado com o aumento da procura que se materializa “sobretudo devido ao envelhecimento da população” que acarreta novas e maiores incidências de doenças. A gestora considera que o setor privado colmata as necessidades crescentes da população, não concorrendo em primeira instância com o setor público. Miguel Guimarães considera que “o crescimento do setor privado tem muito a ver com a falta de capacidade de resposta no setor público”, uma vez que existe um claro subfinanciamento “ou um financiamento desadequado”. O bastonário da Ordem dos Médicos realça que é manifestamente insuficiente ter apenas 4,8% do PIB português dedicado ao SNS. “O setor público tem contratualizado com o setor privado vários serviços e acaba por canalizar mais de 2 mil milhões de euros para o setor privado e social para pagar serviços, que de outra forma o setor público não tem conseguido assegurar”, refere, reconhecendo que “se não houvesse alternativa ao setor público os doentes acabariam por esperar muito mais por uma consulta ou por uma cirurgia”. Ao falar da medicina privada, o bastonário aproveitou também para desmistificar algumas críticas que diz sentir quando “dizem que me importo muito com o SNS e que me importo menos com o setor privado”. “Isto tem uma razão de ser”, adianta. “O SNS é o bem maior (…) é onde nós temos um exemplo daquilo que é a solidariedade entre as pessoas, daquilo que é a dignidade e daquilo que devia ser a equidade de acesso aos cuidados de saúde”, esclarece. “É também o principal local onde se faz a formação médica“, acrescenta. A Ordem preocupa-se com o SNS” porque é o sistema que todos os portugueses pagam através dos seus impostos e, em caso de necessidade, é onde a população recorre e deveria ter sempre acesso em igualdade de circunstâncias. “Um SNS sem a capacidade de resposta adequada tende a aumentar as desigualdades sociais em saúde”, concluiu com preocupação.

Citando resultados de um estudo recente da Universidade Nova, o bastonário aludiu ao facto de o tratamento dos doentes ter tido em 2017 um retorno de 5,2 mil milhões de euros, “cerca de metade do Orçamento de Estado para a Saúde”. Isto, explicou, tem a ver com o facto de as pessoas voltarem a trabalhar mais rapidamente, voltarem a contribuir para as economias familiares e, naturalmente, voltarem a contribuir para o Estado através do pagamento dos seus impostos. Ter portugueses mais saudáveis resulta numa recuperação do dinheiro investido, sublinhou, falando posteriormente do exemplo prático do tratamento da Hepatite C, onde “a cura de cerca de 95% dos casos levou a uma poupança para o Estado, porque o Estado tinha uma despesa grande com estes doentes (…) despesas de internamento, tratamentos médicos, transplantes hepáticos, etc.”. O representante dos médicos defendeu que era importante “quer os hospitais públicos, quer os hospitais privados” começarem a publicar os seus resultados por grandes patologias. Ideia pela qual Isabel Vaz manifestou simpatia e o próprio moderador achou relevante. Miguel Guimarães falava de resultados como taxas de eficácia, cura e complicações.

No tema dos recursos humanos, salientou que o SNS “não tem capacidade para concorrer em termos de remuneração, nem em termos de projetos aliciantes”. “Há uma coisa que é indesculpável que o Governo, ou se quisermos o Ministério da Saúde, ainda não tenha feito: aplicar, na prática, uma coisa que se chama carreira médica”, lamentou o bastonário. “A carreira médica está bem estruturada, mas não é aplicada, está congelada”.

Definindo como benéfica a evolução da tecnologia, Miguel Guimarães lembrou que “temos o dever de conservar a humanização”, uma vez que “na saúde, a relação entre as pessoas, é especialmente importante”. “A atenção que nós damos ao doente é fundamental. Apesar de a inteligência artificial, através de um processo de integração de giga memória e informação consegue dar muitas respostas precisas e adequadas a um caso clínico, mas não tem consciência”. “Os doentes que têm uma preocupação querem ter uma conversa com uma pessoa que consiga estabelecer empatia, dar uma explicação humana e uma palavra de carinho, e não uma explicação robotizada com base em estatísticas e algoritmos”, afirmou.

A maior divergência de opinião entre os convidados estabeleceu-se nas carreiras médicas. Isabel Vaz considera que nos seus hospitais tem em prática uma carreira com categorias e conteúdos funcionais diferentes daquilo que é a carreira no Estado que “são até mais exigentes”, defende. A CEO do grupo Luz Saúde observa que os médicos do privado “não conseguem perceber que o grau de consultor, que é uma condição de admissibilidade da carreira pública, lhes seja barrado”, “essa inflexibilidade e esta forma de pensar dá cabo do SNS”, considera. Sobre isto, Miguel Guimarães foi claro ao afirmar que “carreira médica significa formação contínua e prestação pública de provas”. “O que significa ter uma carreira, alcançar títulos, sem existir uma prestação pública de provas?”, questionou. “Claro que os médicos que se dedicam em exclusivo ao setor privado ou social deviam também poder ser admitidos aos concursos para consultor“, afirmou. Em jeito de conclusão, Miguel Guimarães relembrou que “a Ordem dos Médicos luta por um SNS forte e com capacidade de resposta para todos os cidadãos”, algo que, considera “os nossos políticos não têm feito, limitando-se a discutir lei de bases da saúde e legislações, sem discutir os problemas de saúde dos portugueses”. Numa altura em que comemorámos recentemente os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando fazemos 40 anos de SNS e 50 anos de internato médico, “temos todos o dever de defender o direito das pessoas à saúde e a sua dignidade”, assentou.

Reportagem completa deste debate será publicada na Revista da Ordem dos Médicos nº 198 de maio de 2019.