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Cuidados de Saúde Primários no Brasil – uma realidade diferente

Autoras: Carolina Ponte e Ana Sofia Vitorino, Médicas Internas de MGF no 4º ano (USF KosmUS e USF Mare, respetivamente, ACES Cascais)

Resumo: A atividade no terreno e o acompanhamento diário de um Médico de Família noutro país é a forma mais real de contactar com outras realidades a nível dos Cuidados de Saúde Primários, o que proporciona, em último, uma mais-valia tanto a nível médico como pessoal. Em abril de 2018, no âmbito do Internato de Medicina Geral e Familiar, duas internas realizaram um estágio em Florianópolis (Brasil).

 

Após vários contactos e o feedback unânime que o estado de Santa Catarina no Brasil era uma referência em cuidados básicos de saúde, o local do estágio foi escolhido.  Estando o país a atravessar uma crise económica, seria obviamente uma opção marcada por uma vulnerabilidade e realidade populacional distinta.

O serviço público de saúde brasileiro (SUS), serve, maioritariamente, a população mais desfavorecida, já que as pessoas de classe média-alta, optam pelos seguros de saúde (planos de saúde) e atendimento em instituições privadas. Em 1994, o Ministério da Saúde do Brasil, criou o Programa de Saúde da Família, atualmente designado Estratégia de Saúde da Família (ESF) sendo este assegurado pela Equipa de Saúde da Família (médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e agente comunitário de saúde), na Unidade ou no domicílio, criando vínculos de coresponsabilidade entre a população e os profissionais.1

Ao chegarmos no início de abril de 2018 a Florianópolis, mais precisamente ao Centro de Saúde da Barra da Lagoa, deparamo-nos com um posto de saúde reformado há menos de 1 mês e uma equipa multidisciplinar vasta e trabalhadora, apesar da escassez dos recursos disponíveis e de todas as outras dificuldades existentes. O olhar e o sorriso de todos os funcionários da instituição demonstraram-se cativantes desde o primeiro contacto.

O estágio realizou se durante o período de 2 semanas (80 horas), tendo sido marcado nos últimos dois dias por uma greve do sistema público, reflexo da crise anteriormente mencionada.

O centro de saúde que nos acolheu, localiza-se na região da Barra da Lagoa no leste da ilha de Santa Catarina. É uma zona tranquila e familiar, uma vila tradicionalmente de pescadores, que atualmente dado ao elevado nível de índice de desenvolvimento humano (IDH) existente em Florianópolis, depara-se com uma alta taxa de migração interna de outras áreas do Brasil. Este centro de saúde serve uma população de cerca de 5000 utentes, sendo o horário de funcionamento entre as 8 e as 12h e as 13 e as 17h.

Uma realidade diferente que constatámos no funcionamento deste centro de saúde foi a existência de 2 equipas locais de saúde (constituídas por 1 agente comunitário de saúde, 1 enfermeiro, 1 médico e 2 técnicos de enfermagem). Esta equipa contava com o trabalho e dedicação dos agentes comunitários de saúde, que percorriam diariamente a sua microárea, identificavam problemas da comunidade e semanalmente informavam aos restantes profissionais de saúde da equipa. Foi a forma encontrada de se aproximarem e conhecerem melhor a população que abrangem e desenvolver programas e projetos de gestão e resolução de problemas comunitários.

O centro de saúde é gerido por uma enfermeira coordenadora e além dos profissionais de saúde referidos anteriormente também existia 1 cirurgião-dentista, 1 auxiliar de saúde oral, 1 psicólogo, 1 pediatra, 1 nutricionista, 1 psiquiatra, 1 educadora física e vários internos (designados por residentes no Brasil), tanto de especialidade médica como de medicina dentária e enfermagem.

Para além das consultas e todos os procedimentos ditos “tradicionais”, no Centro de Saúde da Barra da Lagoa existiam ainda outras atividades, nomeadamente coletivas (como grupo da alimentação saudável, grupo do apoio psicológico, grupo de apoio ao tabagista) e de práticas integrativas (alongamento e relaxamento, acupunctura e auriculoterapia) que eram amplamente utilizadas pelos utentes. Todas as atividades descritas eram espaços de educação para a saúde e de partilha e esclarecimento de dúvidas, que permitiam a otimização do tempo e dos recursos humanos.

Uma grande diferença detetada no funcionamento e organização dos Cuidados de Saúde Primários, relativamente a Portugal, foi a elevada proporção de consultas abertas (demanda espontânea no Brasil) em relação às consultas programadas (20%), numa tentativa de solucionar a grande procura por situações de caráter urgente em prol de consultas de seguimento e rastreios populacionais.

Outro aspeto que salientamos foi a demonstração in vivo da prevenção quaternária que tanto se fala atualmente. Como sabemos, a atenção e abordagem do doente como um ser biopsicossocial, tendo em conta o seu contexto social, familiar e na comunidade em que se insere são características que definem a Medicina Geral e Familiar como especialidade. No Brasil, dada a escassez de todos os recursos, tanto a nível de exames complementares de diagnóstico, terapêutica e resposta hospitalar, a abordagem do Médico de Família é tanto ao nível da resolução dos problemas psicossociais como da doença orgânica. Citando o Dr. Armando Norman, o nosso tutor, “a prevenção quaternária implica no fortalecimento e na reconstrução da capacidade crítica e epistemológica dos médicos de família, capacidades em franco declínio decorrente das transformações recentes da medicina, cada vez mais padronizada em protocolos, que induzem uma estandardização e generalização das interpretações e dos tratamentos, pressupondo uma homogeneidade cada vez maior dos doentes, cuja singularidade pessoal e existencial-social-psicológica demanda justamente uma direção oposta, a personalização das interpretações e do cuidado”.2

Enquanto internas de Medicina Geral e Familiar, consideramos que o estágio foi de extrema importância na capacidade de adaptação a novas situações, ampliando a nossa visão acerca de várias problemáticas. A maior multidisciplinaridade existente nas equipas revelou-se, a nosso ver, o aspeto fulcral do funcionamento e prestação dos Cuidados de Saúde Primários.

Por último, deixamos uma palavra de motivação e incentivo a todos aqueles que pretendam realizar um estágio no estrangeiro.

Referências bibliográficas

  1. Brasil. Ministério da Saúde. Guia prático do Programa de Saúde da Família. Brasília, 2001.
  2. Norman AH, Tesser CD. Quaternary prevention: the basis for its operationalization in the doctor-patient relationship. Rev Bras Med Fam Comunidade 2015; 10:1-10.