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Comunidades Compassivas como parceiros para a saúde

Autores:

Rita Eusébio Freitas, Interna de MGF na USF Quinta da Prata (ACES Alentejo Central)

João Pedro Marques, Interno de MGF na USF Quinta da Prata (ACES Alentejo Central)

Sílvia Corrales Villar, Médica de Família na USF Quinta da Prata e médica da ECSCP Amestista – pólo de Estremoz, ACES Alentejo Central

 

RESUMO: Começam a surgir cada vez mais comunidades compassivas. Estas são projectos de intervenção comunitários que estabelecem redes de cuidados entre todos os sectores da comunidade. São parceiros importantes na prestação de cuidados de saúde às pessoas envolvidas em processos de doença crónica incapacitante, em final de vida, perda e luto. Borba é das primeiras comunidades compassivas nacionais.

 

No nosso dia-a-dia como médicos de Medicina Geral e Familiar (MGF) deparamo-nos com uma perspectiva sobre a saúde e suas condicionantes que não nos foi ensinada na Faculdade. Primeiro porque o doente em fim-de-vida estava fora do perímetro da medicina curativa. Depois, porque o modelo biomédico, basilar na educação médica, deixava na penumbra questões antropológicas e sociológicas. O papel da comunidade na saúde das pessoas esteve por isso nas franjas do plano curricular. Nos últimos tempos fomos alargando a amplitude das condicionantes da saúde, da doença e do morrer, numa abordagem mais holística. Com o envelhecimento da população e consecutivo aumento da doença crónica incapacitante e dependência, aliados ao desaparecimento das redes tradicionais de cuidados e isolamento social, torna-se necessário procurar uma resposta comunitária. Contar com a comunidade como recurso para a saúde permite resgatar as competências da sociedade e autonomia da comunidade no auxílio aos seus próprios elementos, colocando-a como parceiro na complexa tarefa de assegurar cuidados de saúde em doentes em fim de vida, suas famílias e cuidadores.

E por que razão é isto importante para um médico? É que se conseguirmos ultrapassar o olhar distanciado do antropólogo, e ir mais além da intervenção possível do médico no utente e na sua família, podemos envolver-nos na comunidade e ajudar a aumentar os seus recursos. Por outras palavras, é poder agir positivamente na saúde do utente para lá do nosso gabinete.

Em Borba, onde trabalhamos como MGF, está a crescer um projecto comunitário, à luz de exemplos bem sedimentados em outros países do mundo: uma Comunidade Compassiva. A Public Health Palliative Care International define uma comunidade compassiva como uma iniciativa de desenvolvimento comunitária associada a cuidados paliativos globais, consistindo em grupos de vizinhos próximos que se juntam para organizar formas de auxiliar as pessoas da sua área de residência que vivem com doença terminal, seus cuidadores e situações de luto ou perda.1 Estas comunidades tentam cumprir a regra dos 95%, que dita que seja essa a percentagem de tempo despendido fora de episódios formais de serviços profissionais por pessoas em fim de vida, cuidadores ou pessoas em luto. Assume-se, portanto, que a morte, o morrer, a perda e o cuidar são responsabilidade de todos. Da comunidade, para a comunidade, criam-se redes de cuidados.

O Professor Allan Kellehear 2 desenvolveu um modelo de cuidados centrados na pessoa e o conceito de cidades compassivas para doentes em final de vida. A pessoa rodeia-se de círculos de cuidados, que da proximidade para os mais distantes são: uma rede interna mais próxima, apoiada por uma rede externa mais alargada, a comunidade, os serviços sociais e de saúde e as autoridades locais e nacionais. O doente em fim-de-vida beneficia de cuidados paliativos ao domicílio. Mas o bem-estar deste doente e sua família não se esgota nos recursos que podemos dar enquanto paliativistas ou médicos de família. Uma comunidade compassiva permite que nos últimos tempos de um doente em fim-de-vida, sua família e cuidadores sejam mais resilientes, menos exaustos, e que o doente possa ter mais qualidade de vida no seu domicílio. O suporte comunitário ao doente e seu cuidador pode estar em tarefas como passar algum tempo com o doente, seja lendo um livro, conversando, ocupando-se do doente ao mesmo tempo que providencia tempo ao cuidador informal para que possa descansar ou realizar alguma tarefa que esteja adiada por não se poder alhear de ser cuidador a tempo inteiro. Outras esferas da rede de cuidados estão em tarefas da vida diária como cozinhar, fazer a limpeza da casa, jardinar, ir passear o animal de estimação, fazer as compras, ou dar boleia. A ideia é criar uma rede de suporte externa que apoie a rede de elementos que prestam cuidados directos ao doente.

Seria interessante perguntar a Darwin se ao animal Homem basta ser o mais bem-adaptado ao ambiente, ou se podemos acrescentar uma variável à sua teoria: a compaixão presente na comunidade. A hipótese que se coloca é que sobrevive mais (e melhor) a pessoa integrada na comunidade com mais compaixão. Na etimologia da palavra compaixão encontramos o seu significado: do latim “compassio”, ou seja, “sofrer com”. Envolver-se de compaixão é estar ao lado do outro, sentindo e experimentando a realidade desde a sua perspetiva. E partindo daí, agir. Sobre este atributo interessa ler a Carta da Compaixão, impulsionada por Karen Armstrong, vencedora de TED Prize 2008.3,4 Transcendendo as fronteiras políticas, dogmáticas, religiosas, ideológicas, e baseada na nossa interdependência enquanto humanos, a compaixão é essencial para as relações humanas, chamando-nos a tratar dos outros como queríamos que nos tratassem a nós. É a força motriz para trabalharmos incansavelmente para aliviar o sofrimento do outro, de sair do centro do nosso mundo e colocar o outro nesse lugar, e tratar todos os seres humanos com justiça, equidade e respeito. Inspiradas na Carta da Compaixão, as Comunidades Compassivas podem abordar outras problemáticas para além da saúde, conforme as necessidades particulares de cada comunidade, que sejam por ela reconhecidas como causadoras de sofrimento.

Resumindo, o movimento Cidades ou Comunidades Compassivas baseia-se em três pilares:5

– A comunidade impulsiona a mudança e toma responsabilidade na promoção da sua própria saúde.

– A compaixão motiva as suas ações. Entende-se por compaixão a verdadeira humanidade; reconhecer o sofrimento do outro, querer minimizá-lo e agir em conformidade para que tal aconteça.

– A formação de redes entre todos os sectores da sociedade, coordenando todos os recursos, permite proporcionar cuidados de qualidade e integrais aos seus cidadãos.

A Associação Borba Contigo Cidade Compassiva (ABCCC) é uma organização sem fins lucrativos composta por cidadãos borbenses e por uma médica da USF Quinta da Prata e da ECSCP Ametista (Estremoz). O seu caminho começou através da sensibilização da população sobre a necessidade de cuidar em fim de vida, trabalhando as concepções de morte e do morrer, para que deixe de ser um tema tabu. Têm sido criadas iniciativas que promovem a reflexão sobre este aspecto da vida, como sendo um processo normal e expectável para todos os seres humanos, desmistificando a ideia de que seja apenas da esfera médica. Trabalhar estes aspectos conduz as pessoas a enquadrar a sua motivação e preparação para prestar cuidados, atenção e tempo às pessoas nestas situações. A fase seguinte será a capacitação dos cuidadores. Por fim, será feita a criação de redes de cuidados entre todos os sectores da sociedade, para assim garantir o cuidado integral da pessoa com doença grave avançada ou mesmo no final da vida.

É com muito entusiasmo que vemos crescer a ABCCC, contribuindo para impulsionar Borba a regressar à essência de uma “humanidade partilhada”.

 

Bibliografia: