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Carta do bastonário | Respeitar e dignificar a especialidade de Medicina Geral e Familiar

Estimado Colega,
É com muita preocupação e impaciência que a Ordem dos Médicos tomou conhecimento que a Lei nº 12/2022 (Orçamento do Estado 2022), publicada em 28 de junho, permite a entrega de listas de utentes a médicos sem especialidade no âmbito dos cuidados de saúde primários. Esta lei determina, no artigo 206º ponto 9, que “Enquanto não houver condições para assegurar médico de família a todos os utentes dos ACES identificados no despacho a que se refere o n.º 6, os órgãos máximos de gestão dos serviços e estabelecimentos de saúde do SNS podem, a título excecional, celebrar contratos de trabalho em funções públicas a termo resolutivo incerto, ou contratos de trabalho a termo resolutivo incerto, consoante o caso, na proporção de um médico por cada 1900 utentes sem médico de família, incluindo os que a ele não tenham direito por sua própria opção, com médicos habilitados ao exercício autónomo da profissão, aos quais compete assegurar consulta médica, especialmente em caso de doença aguda, aos utentes inscritos numa lista pela qual ficam responsáveis.” 

O Governo liderado pelo Primeiro-Ministro António Costa não para de nos surpreender. Os seus anteriores Ministros da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e da Saúde legalizaram a “medicina tradicional chinesa” de forma silenciosa, deixando ficar no fundo da gaveta a ciência, contrariando a Universidade, o conhecimento e o método científico. Uma decisão com consequências negativas imprevisíveis para milhares de pessoas. Quanto custa ao país uma má decisão contrariando a ciência?

Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), o rácio de médicos por 1.000 habitantes em Portugal subiu 74% em 20 anos. Em 2020, Portugal contava com um rácio de 5,5 médicos por cada 1.000 habitantes, ou seja, mais 2,4 do que há 20 anos. De acordo com o INE, o crescimento do número de médicos em Portugal foi mais elevado do que na restante União Europeia a 27, com 3,6% ao ano entre 2014 e 2018, quando na UE se ficou pelos 1,4%. Aliás, Portugal tem neste momento uma situação privilegiada no que diz respeito à formação médica, ocupando em 2019 o nono lugar nos países da UE quanto ao número de novos estudantes em Medicina por ano: 15,8 por 100.000 habitantes, sendo a média da OCDE de 13,1. No que diz respeito ao número de médicos, de acordo com dados da OCDE, a média de 36 países estudados é de 3,5 médicos por 1.000 habitantes, muito longe dos 5,5 de Portugal (que o coloca em 3º lugar nos países com mais médicos).

A oferta formativa é adequada às necessidades de Portugal, residindo o problema no que acontece a seguir à formação especializada, isto é, na incapacidade do Governo em criar condições para que os médicos fiquem a trabalhar no nosso país e, concretamente, no serviço público. Já são muitos milhares os médicos que decidiram optar por outras soluções de trabalho, fora do SNS ou até fora do país. Em 31-05-2022, a Ordem dos Médicos tinha um total de 66.813 médicos inscritos. No que diz respeito aos especialistas de MGF, estavam inscritos no Colégio de Medicina Geral e Familiar 8.365 médicos. Destes, no último balanço social publicado pela ACSS, 5.583 trabalhavam no SNS. A principal preocupação do Governo deveria centrar-se em melhorar as condições dos cursos de medicina já existentes (nas suas dimensões de investigação, inovação, tecnologia e formação) e ajudar a resolver a questão central do problema existente ao nível do SNS contribuindo com propostas construtivas e motivadoras para que os médicos recém-especialistas e os especialistas mais experientes optem por ficar ou continuar a trabalhar no SNS. Nesta matéria, tentar sempre nivelar por baixo, como tem acontecido, não é uma boa solução. De resto, a Ordem dos Médicos nos últimos 5 anos tentou maximizar globalmente as capacidades formativas, ultrapassando este ano as 2000 capacidades (no caso da MGF são mais de 550), mantendo a qualidade da formação.

O ex-ministro da CTES, Manuel Heitor, em entrevista ao Diário de Notícias de 2 de setembro de 2021, fez afirmações em que desvalorizava a especialidade de Medicina Geral e Familiar, a própria medicina e a qualidade dos seus profissionais. Por isso perdeu a credibilidade e confiança dos médicos portugueses e dos médicos europeus. A Ordem dos Médicos portuguesa, a BMA (British Medical Association) e a UEMO (European Union of General Practioners) tomaram posição pública a condenar as suas declarações.

Neste momento, estamos perante uma situação semelhante que em nada honra a qualidade da medicina do nosso país. Não reconhecer a importância da qualidade de formação dos especialistas portugueses, da carreira médica e do SNS, significa recuar no tempo 40 anos. Significa ignorar o notável contributo que os médicos deram para a qualidade dos cuidados de saúde que temos hoje. Significa ignorar de forma imprudente a qualidade dos médicos de família na principal porta de entrada no SNS: os cuidados de saúde primários. Significa ignorar a posição de Portugal no mundo no que diz respeito à qualidade da formação, à capacidade de formação e aos indicadores de saúde. Significa também não saber como enquadrar os médicos sem especialidade que pretendem exercer medicina no setor público. Lamentável. Mais ainda, a posição agora assumida, de querer ter em Portugal cidadãos e doentes de primeira e segunda categoria, uns com direito a médico especialista outros sem direito a médico especialista, é inaceitável porque constitui uma ameaça ao agravamento das desigualdades sociais em saúde e aos princípios fundamentais da Saúde consagrados na Constituição da República Portuguesa e na Lei do SNS: equidade, solidariedade e dignidade.

Estimados Colegas, os nossos médicos têm conseguido durante todos estes anos fazer mais com menos. Como de resto foi particularmente notório durante esta pandemia. A sua elevada qualidade, que resulta de uma formação de excelência e de um humanismo e solidariedade ímpares, deixam Portugal com uma imagem positiva na Europa e no resto do mundo.

Não podemos aceitar que a formação especializada seja desvalorizada desta forma, quando temos excelentes médicos especialistas em Portugal e outras opções possíveis, já amplamente divulgadas por diferentes estruturas com representação social incluindo os partidos políticos, para que cada cidadão tenha acesso a médico de família. Insistir em recuar 40 anos e tentar implementar uma visão distorcida de uma saúde moderna e especializada, constitui um retrocesso inadmissível. Queremos uma política de saúde que respeite, valorize e defenda os cidadãos/doentes, os médicos e os profissionais. Que defenda a ciência e a qualidade. Que saiba ouvir antes de legislar ou falar.

A Ordem dos Médicos convocou o Fórum de Medicina Geral e Familiar para amanhã, dia 4, no qual marcarão presença a APMGF, a Direção do Colégio de MGF, a FNAM, o SIM e a OM, para que seja tomada uma posição conjunta robusta sobre esta situação.

Entretanto deixo-vos um link para uma Petição (ASSINAR aqui) divulgada pelos Médicos de Família de Portugal e Internos de formação específica de Medicina Geral e Familiar, em que se requer a revogação deste ponto da referida Lei. Esta Petição pode ser assinada por todos os médicos. Já a assinei.

Muito obrigado.
Com afecto e respeito,

Miguel Guimarães
Bastonário da Ordem dos Médicos