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Carta à Ministra “acerca do estado de catástrofe na luta contra a pandemia no Centro Hospitalar de Setúbal”

A carta aberta aqui reproduzida foi enviada pelo Conselho de Administração do Centro Hospitalar de Setúbal para o gabinete da ministra da Saúde. O conteúdo foi subscrito pelo gabinete de crise do Centro Hospitalar para as questões da pandemia, bem como por vários diretores de departamento e de serviço e ainda por vários funcionários de várias áreas profissionais.

Exª Srª Ministra da Saúde

Drª Marta Temido

Os signatários do CHS dirigem-se a Vª Exª no intuito de formularem um derradeiro grito de alerta chamando a atenção para a situação verdadeiramente insustentável com que se deparam diariamente no CHS, para tratarem os inúmeros doentes que acorrem com gravidade crescente ao seu Serviço de Urgência.

O CA desta instituição hospitalar declarou internamente o nível III do Plano Interno de Contingência no dia 11/01/2021 (que equivale à situação de catástrofe), e, mais recentemente, subscreveu um Documento do Grupo de sete Hospitais / Centros Hospitalares da periferia de Lisboa, no qual se chamou a atenção da hierarquia ministerial para a situação mais do que preocupante de rotura assistencial permanente que vivem desde o início do corrente ano. Neste documento denunciava-se a iniquidade do facto da taxa de esforço das Unidades Hospitalares desse grupo ser muito superior à dos Hospitais / Centros Hospitalares da capital, desproporcionalidade que, se vier a ser corrigida, poderá, de imediato, atenuar grandemente a angustiante situação vigente.

Na primeira fase da pandemia, foi possível gizar uma estratégia que se pautou pela capacidade de antecipação, em que foi possível cumprir com todas as regras de controlo de infeção. Presentemente, a realidade é bem outra, condicionando a necessidade diária de se alterarem os planos para se fazer minimamente face ao inusitado crescendo do número e da gravidade clínica dos doentes que nos procuram.

Assim, temos hoje sete enfermarias e três Unidades de Cuidados Intensivos cheias de doentes COVID, os casos dos contactantes com os que surgem positivos no interior da enfermarias supostamente para doentes não infetados por SARS CoV-2, já não vão, como outrora, para quartos individuais até se saber ao certo se se tornam, ou não, positivos, por tal ter deixado, manifestamente, de ser possível. O número de diagnósticos de doentes que entram com teste negativo e posteriormente se tornam positivos, no interior daquelas mesmas enfermarias, não deixa de aumentar, tal como a quantidade de profissionais infetados, o que torna a gestão de toda esta problemática muito complexa, acarretando frequentes quebras nas condições de segurança dos doentes que temos a cargo, designadamente no domínio do controlo de infeção.

Mas, o mais angustiante é, sem dúvida, as condições em que os doentes estão a ser acolhidos e tratados do setor ADR Adultos do Serviço de Urgência Geral. É que apesar de possuirmos um pré-fabricado com cerca de 550 m2 e de o termos ampliado recentemente, à conta da afetação de uma parte das instalações do setor de Triagem da Urgência de Adultos, a verdade é que nos sentimos verdadeiramente submergidos pelo avassalador número e gravidade dos doentes que são diariamente internados, muitos deles com adicionais problemas de índole social que muito dificultam a logística da resposta, já de si muito complexa.

Num espaço dimensionado para ter, no máximo, cerca de vinte doentes em observação e tratamento e outros tantos em espera, é frequente atingir-se um número superior a 100, entre os quais vários ventilados em simultâneo, uma vez que o internamento em enfermarias e/ou UCIs é extremamente dificultado tendo em conta a oferta (apesar das altas), e a procura (ao que acresce a extrema dificuldade de transferência de doentes). Isto configura uma verdadeira situação de catástrofe. Para tentar minorar tal situação, já foram montadas duas tendas do INEM e está-se em fase de instalação de um outro pré-fabricado com cerca de 200 m2 que será acoplado ao anteriormente edificado. Contudo, se a dinâmica epidemiológica não abrandar rapidamente, nem isso será suficiente.

Pretendíamos, de seguida, expressar algumas outras preocupações que reputamos de relevante impacto, e que deveriam passar a merecer a preocupação do Ministério dirigido por Vª Exª. Assim, com vista a permitir uma resposta mais célere e adequada a todo este conjunto de problemas aqui elencado, será importante transmitir também o seguinte:

  • Os profissionais do CHS estão de alma e coração acometidos na sua missão de continuar a prestar os melhores cuidados de saúde possíveis à população que servem e a ajudar o CA nesta hercúlea tarefa, mas confessam-se extremamente cansados pelo extenuante esforço que fazem diariamente, bem como frustrados pelas parcas condições de trabalho que dispõem;
  • Apelam para que se instituam várias medidas que, individualmente e no seu conjunto, podem ajudar, e muito, a atenuar os nefastos efeitos da atual pandemia, a saber
    1. Gestão centralizada das camas de enfermaria, à semelhança do que se passou a fazer recentemente com as dos Cuidados Intensivos;
    2. Redistribuição destas de modo a proporcionar uma taxa de esforço equivalente entre todas as Unidades Hospitalares da ARSLVT;
    3. Fazer com que as instituições dependentes do Ministério da Solidariedade e Segurança Social aceitem os critérios de cura da infeção COVID definidos pela DGS, de modo a que os doentes que já os preenchem e têm condições de poderem ter alta clínica hospitalar, tenham possibilidade de saírem para podermos acolher aqueles que efetivamente mais necessitam e se amontoam no ADR;
    4. Criar uma estrutura que operacionalize o transporte inter-hospitalar de doentes urgentes e emergentes, pois as equipas de urgência estão demasiado desfalcadas em meios humanos para tal, deixando, quando fazem, ainda mais desguarnecida, a equipa do Serviço de Urgência;
    5. Melhorar a orientação dada pela Linha de Saúde 24 que, amiúde, é um fator de aumento nefasto do congestionamento ao nível da Urgência do Hospital, pois utiliza critérios de triagem de eficácia e adequação mais do que duvidosa;
    6. Aprovar e generalizar a utilização dos testes de diagnóstico denominados de point-of-care que utilizam a saliva, cuja leitura do resultado pode ser feito pelo próprio doente, em muitos casos, e, por maioria de razão, por qualquer profissional de saúde, e cujo resultado pode ser obtido em escassos minutos, alguns dos quais resultam do trabalho de centros de investigação nacionais, ainda que se saiba que não têm uma capacidade discriminativa absoluta. Esta solicitação tem por base a sua aprovação noutros países, dado serem a única maneira possível para poder, com mais eficácia e segurança, destrinçar com a necessária celeridade, os doentes infetados, dos restantes;
    7. Implementar o funcionamento de um hospital de campanha em articulação com a Proteção Civil, para onde possam ser transferidos os doentes em fase de convalescença e sem condições habitacionais para o fazerem no seu domicílio, não necessitados de cuidados médicos diferenciados, de modo a ganharmos maior capacidade de internamento para os doentes mais graves;
    8. Mobilizar profissionais aposentados, alunos dos últimos anos de Medicina e de Enfermagem e outros voluntários para que estes se responsabilizem por essa missão assistencial, devidamente coordenados pelos Cuidados Primários de Saúde e, se necessário, num outro patamar de responsabilidade, pelos Cuidados Hospitalares;
    9. Entregar algumas tarefas clínicas de índole mais burocrática, mas de fulcral importância, a pessoas com a tipologia referida na alínea anterior, embora com a necessária experiência profissional, orientados pela Saúde Pública, de modo a que os colegas dos Cuidados Primários de Saúde se possam dedicar fundamentalmente às mais importantes tarefas iminentemente assistenciais (sobretudo a doentes não COVID), em vez de perderem um tempo infindo, por exemplo, com o SINAVE-Médico ou com o TRACE-COVID, tal como a vigilância, por via telefónica, dos doentes em quarentena (sejam eles contactantes, doentes assintomáticos, ou apenas com sintomas ligeiros, e, mesmo, os que possam ter alta mais precoce dos internamentos hospitalares, desde que as condições habitacionais e de apoio familiar o permitam, mediante vigilância clínica ativa por meio de oximetria digital);
    10. Criação de quartos de isolamento capacitados para receber doentes não COVID, sobretudo para os casos de Tuberculose, que não deixaram de existir e que estão, no atual momento, sem qualquer resposta adequada.
  • Solicitam que o Ministério da Saúde e o Governo olhem com a devida atenção para o Projeto de Ampliação e Remodelação do CHS, que aguarda há cerca de cinco anos por ser concretizado, mas cujo financiamento foi inscrito no Orçamento Geral do Estado para o corrente ano de 2021 (tal como no passado já o fora), considerando ser inadmissível que desta vez não se concretize, até parque tal é condição para se poder vir a fazer face a uma futura pandemia, sem os imensos e dramáticos constrangimentos que esta nos está a causar;
  • Clamam ainda, logicamente, por uma adequação dos meios humanos e técnicos ao mesmo Projeto, bem como para um financiamento proporcional à diferenciação da medicina que praticam, por tal nunca ter sido atempadamente efetuado, apesar de insistentemente solicitado, o que está na génese do artificial aumento do seu crónico défice financeiro e que tão injustamente tem prejudicado a imagem pública e institucional do CHS.

A terminar, acrescentaríamos que estamos igualmente muito preocupados com os doentes com patologia não COVID que estão, na maioria dos casos, a serem muito prejudicados com a resposta que teve que ser implementada para fazer face à atual Pandemia, pois é manifestamente impossível fazer ambas as coisas com igual qualidade aos dois grupos de doentes e num espaço de tempo considerado útil, pelo que apelamos também para a implementação de uma estratégia institucional, regional e nacional que importa sobremaneira ser implementada com a necessária rapidez e para a qual estamos igualmente disponíveis para colaborar.

 

                  Setúbal, 2021/02/01

Os signatários