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A “violência ao obstetra”

Autor: Maria Gonçalves, Ginecologia-Obstetrícia

Muito se fala de VIOLÊNCIA; de género, doméstica, machista, obstétrica, vicária etc.

Definitivamente o termo violência faz parte do novo léxico e sem dúvida está na moda, sendo “in” e actual. Estando na ordem do dia é portanto indiscutível e inargumentável.

E assim vou aproveitar o termo para apresentar outros atributos a este novo conceito, talvez no âmbito do chamado politicamente correcto e falar de uma outra violência mais escondida e de que geralmente não se ouve falar: a “VIOLÊNCIA AO OBSTETRA”.

Na minha condição de obstetra tenho de confessar que em muitas ocasiões me senti “violada” e esgotada.

Estando muitas vezes a trabalhar ininterruptamente, de um modo seguido, até às 14 horas, com um frugal pequeno-almoço tomado às pressas, antes das 8h, de bexiga a rebentar e de estômago a doer de fome e a atender utentes/pacientes/clientes/ou doentes dependendo da terminologia que quiserem, nas Urgências da Maternidade, e ouvir “como acabei de almoçar agora e só começo a trabalhar às 14h30, vinha saber se já tem algum resultado”.

Desde quando é que “vir saber” dá direito a uma utilização do serviço de urgência?? Ou às 4 horas da manhã, morta por esticar um pouco as pernas, atender queixas sem sentido como “estou com corrimento há 3 semanas” nesse mesmo serviço de urgência…

É tudo uma questão de literacia em saúde, dirão alguns e de facto assim é. Mas é também o descrédito e o desconhecimento do trabalho a que os serviços estão votados, por melhores intenções que tenham os seus profissionais. Há culturalmente um menor investimento no valor do trabalho do médico, de um modo geral e na Obstetrícia em particular. Cada vez mais existem conhecedores não médicos a falar em seu nome, a terem audiência, pessoas “doutoradas” em Medicina e Obstetrícia, porque leram num livro isto ou aquilo, porque a amiga disse, porque foram ver na Internet… porque os meios de difusão lhes dão antena e a confusão instala-se sobre os papéis de cada um.

Lembro de ouvir  os comentários dos meus amigos, és parva, as doentes que esperem, pões o trabalho sempre à frente da tua vida e de ti própria…

Talvez tenha sido educada para me focar mais nos meus deveres do que nos meus direitos, mesmo sendo esses de necessidades básicas ou talvez seja muito confuciana “não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti”.

Colocando-me no lugar dos outros sempre e ainda mais do/dos doentes, porque não gostaria de chegar a um serviço de urgência, com uma ligeira má disposição, uma moinha no baixo ventre e a intuição de uma Mãe que algo não está bem com o meu bebé e esperar pela minha vez e esperar e esperar para ser atendida, para depois ser tarde demais. Por isso esta profissão tem de ser valorizada e a literacia em saúde um objectivo dos ministérios, das ordens e dos médias.

Porque todo o mundo tem direito a ir a um Serviço de urgência, porque todo o mundo tem direito às suas necessidades básicas, mas se todos fossem mais cúmplices e se colocassem no lugar dos outros, garantidamente esse mundo seria melhor.

Como eu, a maioria dos meus colegas seguem os princípios Hipocráticos,  ainda que actualizados com novos critérios adaptados à evolução social e pensam sempre no doente em primeiro lugar, no seu melhor bem. É esse o nosso código de honra e  deontológico e a nossa forma de praticar a legis artis, a servir o outro, mesmo que  algum sofrimento básico, faça parte do nosso trabalho. Mas ele tem de ser mostrado, tem de ser reconhecido pelos demais para ser respeitado. É uma “violência” consentida é certo, a que por vezes sofremos. Mas o seu reconhecimento irá mitigar esses momentos mais pesados e permitir uma cidadania mais responsável, baseada no respeito e no entendimento do que é recorrer a uma urgência educadamente quando a ela se deve acorrer, com consideração pelo outro e não aonde se recorre sem um fundamento real.

A educação em saúde passa pela informação e pelo respeito para que harmonicamente essa “violência” seja atenuada pela cumplicidade dos que trabalham e dos precisam desse trabalho. Num equilíbrio esclarecido e educado.