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A Lei de Bases e o SNS (sns)

Daqui a sete anos ainda estaremos a discutir o futuro do Serviço Nacional de Saúde?

Autor: Orlindo Gouveia Pereira; Médico psiquiatra, Professor emérito de psicologia.

Não há dia que passe e jornal que se preze que não fale do Serviço Nacional de Saúde. Diga-se bem, diga-se, mal, até foi noticiado que se vai rever a Lei de Bases da Saúde. Para quê? Com que futuro?

Todos sabem o que diz a Constituição. Poucos saberão o que dizem as bases da Lei nº 48/90. Alguns não repararam que a sigla SNS tanto corresponde ao serviço (previsto na Constituição) quanto ao sistema (definido na Lei). Alguns inventam: “O SNS (serviço) tem de ser público!” Onde é que isso estará escrito? (Na Constituição prevê-se, sim, um serviço público, mas de ensino).

O Sistema Nacional de Saúde (SNS) “é constituído pelo Serviço Nacional de Saúde e por todas as entidades públicas que desenvolvam a atividade de promoção, prevenção e tratamento na área da saúde, bem como por todas as atividades privadas e por todos os profissionais livres que acordem com a primeira a prestação de todas ou de algumas daquelas atividades” (base XII). É evidente que urge rever esta definição… no português!

Esta, como outras confusões e subterfúgios, decorre da inexistência de uma análise conceptual e sistémica. Deve esta começar pelo uso do vocábulo saúde. No dicionário, além de usos interjetivos e auguratórios, significa, antes de mais, um estado ou de equilíbrio ou de boa disposição. Foi este último sentido, que a OMS foi buscar para criar a famosa definição utópica de 1948, que representou o consenso possível, no pós-guerra, entre nações do 1º e do 3º mundo, acrescentando “social” a bem-estar “físico e psíquico”. A levarmos a definição à letra, teria de ser a politica a promover a saúde. (De facto, já não são os médicos quem manda na saúde, mas sim os políticos).

O que está em causa é que a “ação médica” se realiza pela vida. O propósito do sistema é proporcionar aos portugueses uma vida saudável.

Da mesma raiz latina salute o substantivo saúde é equivoco, mas o adjetivo saudável é perfeito. Note-se, no entanto, que embora saúde pública seja admissível, profissional de saúde não o é.

O que o médico sempre fez, desde o alvor dos tempos, foi lutar para manter e prolongar a vida de quem nasce, de quem adoece e de quem é lesado ou ferido. Até se pode dizer “manter uma vida saudável”. Se a história nos mostra que diversas atividades, depois tornadas profissões, se juntaram aos médicos, o progresso que a medicina requereu das ciências, desde o Renascimento, desembocou no nosso tempo, na investigação, no diagnóstico, na criação de novos meios de tratamento, incluindo a I.A. e a robótica, na cooperação estreita com matemáticos, informáticos, economistas, engenheiros e outros mais, que seria ridículo classificar de profissionais de saúde.

Não se esqueça que, depois de 1948, o que temos estado a fazer, inutilmente, é traduzir as palavras inglesas hale, heal e health ou a francesa santé, que se originaram no século XII, nas respetivas línguas. A portuguesa saúde vem de salude (1047), já se escrevendo saude em 1214, significando ou salvação da alma, como no testamento de Dom Afonso II ou “saudar alguém, bom estado físico, conservação dos direitos de cidadão, situação civil, bom estado moral”. Por seu lado o adjetivo saudável, surge no século XVI, com João de Barros. Atualmente, fora as ocasiões em que se saúda (com ou sem espumante), saúde é entendida como um “estado de equilíbrio, bem-estar, vigor, voto ou despedida”.

Aqueles que insistem em dizer profissões de saúde, são os mesmos que usam paciente e utente para dizer doente (ou grávida). Paciente, do lat. patiente, é o “que suporta; que sofre; resistente”, isto é, um ser passivo. Utente, do lat. utente, “que possui” ou utile “que serve; aproveitável; vantajoso”, isto é, um ser útil (ao profissional). Ora o que os médicos sempre pretenderam e os de saúde pública ainda mais é que o “sujeito da ação médica” seja ativo, responsável pela própria vida. Doente, do lat. dolente, é adjetivo. Por isso, deve dizer-se, pessoa doente. – A questão não é académica e comporta a diferença abissal que há entre dizer “gestão de recursos humanos” ou dizer “gestão de pessoas” (mas não de “pessoal”)

Falta-nos, como o professor Adriano Morais, repetidamente notou, um conceito estratégico nacional. Sem ele não é possível deduzir as linhas mestras que presidam à revisão da Lei de Bases da Saúde. Mas, sobre o Sistema Nacional de Saúde, dispomos da teoria dos sistemas e das teorias da administração e da gestão para nos guiar. Mesmo assim o que se segue é uma tentativa parcial de dar resposta às questões mais urgentes.

O que é central ao sistema e a todos os serviços que lidam com a vida dos cidadãos nem sequer é o médico. Nem sequer a sua gestão, pode ser, nos tempos que correm, centrada no cliente (ou utente). O cerne do sistema e dos serviços é a relação médico-doente. E a questão que se põe é como ela será (ou já é) neste mundo da quarta revolução industrial, da inteligência artificial, da robótica, das tecnologias da imagem e da impressão 3D de órgãos em transplante? Uma coisa é certa, ou até o já era há muito, a carreira dos médicos no SNS, não poderá continuar a ser como o era na função pública do tempo do Dr. Salazar. A carreira terá de ser autogerida, desde o inicio, ou mesmo, desde o tempo de estudante e terá de se adaptar às mudanças, às aprendizagens e inovar a cada passo. Sendo assim, neste mundo em acelerada mudança, daqui a sete anos, ainda haverá SNS tal como o conhecemos?

Não é uma provocação, é uma antevisão realista. O SNS (serviço), nasceu da generosidade de médicos, que foram os autores do Relatório das Carreiras Médicas, no tempo em que Medicina Social era moda. Para o movimento de abril de 1974 foi uma resposta revolucionária bem-vinda pelo povo português, mas que cedo se enredou nas vicissitudes do governo e do governanço.

– Não é graçola esta tradução do inglês governance ou do francês gouvernance (existente desde 1200) é apenas uma opção de género… gramatical. Em qualquer caso significa o que realmente acontece quando se governa. Ora, do governanço ou da governança, resultou a progressiva proletarização dos médicos, com acentuada mecanização dos procedimentos e irreversível deterioração da aprendizagem prática, isto é, do que para outros se chama “formação profissional” (e tinha entre nós expressão maior na “visita à enfermaria”). De tudo isto resultou uma perda considerável de poder, que ficou consagrada na frase da ministra Leonor Beleza “Os médicos são um tigre de papel”. Se é que as tinham, recolheram as garras e deixaram-se gerir por novos protagonistas, como os gestores hospitalares e por novos desempenhos de papel de outros tais “profissionais de saúde”. Mesmo que não seja evidente, assiste-se a uma verdadeira “luta de classes”, agravada pela tendência secular dos médicos de não se envolverem com sindicatos. Se assim continuarem, cada um fechado no seu gabinete, o mais que verão é “a caravana passar”.

Se vale então a pena rever a Lei de Bases, que isso seja feito fazendo uso do conhecimento cientifico e tecnológico e da sabedoria das nações, incorporando as “últimas tendências”. Num tempo dominado por redes de comunicação, que superam as tradicionalmente ligadas à “comunicação social”, quase sempre sem razão, as populações “ativistas” tenderão a questionar os critérios científicos que fundamentam as decisões administrativas. Se constar que uma vértebra lesada foi enxertada, por impressão 3D, com material originado nela própria, todos os que tiverem algum problema semelhante quererão que lhe façam o mesmo. E até poderão convocar manifestações se houver resistência da parte de quem pode autorizar. Noutros casos os “sábios da internet “, são capazes de gerar movimentos com consequências gravosas para a saúde pública, como aquele em que pais não vacinaram filhos, alegadamente por terem tido conhecimento de um artigo do Lancet que mostrava uma correlação entre vacinação e autismo. Muitas crianças morreram de doenças evitáveis, por causa deste artigo, que já se demonstrou ser um embuste. O Lancet já pediu desculpa aos seus leitores. – Como é que se pode lidar com casos destes, com dietas “paleolíticas”, com práticas de curandeirismo, algumas aprovadas pelo legislador? Não basta os médicos denunciarem os logros, até porque, perderam o poder de serem confiáveis.

Para acompanharmos a mudança e a inevitável resistência à mudança que as modificações tecnológicas induzem, melhor é que nos situemos a nível do sistema. Raciocinar sobre cada um dos serviços, mesmo os de ponta, tem de ser feito na rede de circuitos políticos, económicos, logísticos e médicos que formam o sistema. Só assim perceberemos, igualmente, como desenvolver a nossa própria carreira.

O SNS – sistema, compreende o Serviço Nacional de Saúde, os serviços de saúde das forças armadas e militarizadas, a ADSE, serviços de saúde de ministérios, serviços de medicina do trabalho, de medicina legal, farmacêuticos, veterinários, plataformas logísticas, centros de investigação, faculdades de medicina e hospitais escolares, outras escolas de saúde, etc. etc. Podemos agrupá-los por sectores médicos e não-médicos. Estes últimos comportam os de logística entre os quais talvez seja conveniente modificar o regime da “hotelaria hospitalar”. É neste domínio e só nele, que os gestores têm um papel a desempenhar. A gestão dos serviços médicos, incluindo a telemedicina e futuramente a robótica, toda a investigação, todo o ensino permanente e os concursos, muito ganharão se voltarem para o primeiro termo da relação médico-doente.

Para se dotar o país de uma rede de serviços, que cubra todo o território ou se desloque nele ou esteja em comunicação com os serviços centrais, é necessário atender à variabilidade geográfica, social, cultural e religiosa em que vivemos. Não é só de local para local, mas também no tempo. O que hoje e aqui parece aceitável, amanhã já o não será.

Sempre sob a alçada de uma racionalidade constrangida (H. Simon), o rationale do sistema tem transitado da assistência para o produto e para o cliente ou utente.

O modo assistencial consagra, aquilo a que os cristãos chamam caritas. Bons exemplos portugueses e espanhóis são as misericórdias e a obra de São João de Deus. Já se tentou prescindir das primeiras, mas também já se reconheceu o erro.

A transição do modo centrado sobre o produto para o centrado sobre o cliente ocorre quando se reconhece que aquele se revela, comprovadamente, ineficiente em certos sectores. Em saúde pública, consideram-se, antes de mais, as populações e por influência dos economistas e gestores, usam-se indicadores de “produção de saúde”. Quando o foco está no cliente, pessoa doente individual a atenção vai para todos os tipos e modos de tratamento. Dizem que é o que é requerido pela “quarta revolução industrial”, mas não pode ser implantado antes de se terem passado num determinado tempo e lugar as duas etapas anteriores.

O elemento fundamental do sistema e dos serviços, que estamos a considerar, é a pessoa ou melhor a díade médico-doente (cliente, utente). São as vicissitudes da relação, que estes estabelecem, que vão determinar, parcial, mas significativamente ou os resultados na população ou a cura, a recuperação e a reabilitação do doente. Isto na medida em que o Estado o permitir. (Não sei se já repararam, mas os governos existem mais para proibir do que para fazer o que convém aos cidadãos. – Que as ordens não os imitem!)

Esta perspetiva determina, necessariamente, os modelos de gestão, a começar na “gestão de pessoas” e que só no modelo centrado no produto se chama “gestão de recursos humanos”. A razão é simples, o modelo corresponde ainda a um mundo tecnológico-mecânico em que os trabalhadores são considerados “peças substituíveis” e em que é necessária a força dos sindicatos para regular as relações de trabalho – Este é o modelo que estamos a viver nos serviços estatais e que segue a burocracia de Max Weber, também dito “modelo clássico da organização”.

Ao contrário, no modelo centrado sobre o cliente, que é indispensável ao acompanhamento da sociedade tecnológica em que estamos a entrar (mas em que outros já entraram decididamente), há que gerir o cliente, que tanto é o doente quanto o é o médico, (o enfermeiro, o paramédico e os auxiliares). Como o que regula o sistema é a excelência do serviço prestado, não pode haver aqui “peças substituíveis”.

O modelo centrado na produção é propicio a uma surda concorrência entre “profissionais de saúde” e a uma disputa de fronteiras de ação entre eles. O modelo centrado sobre o cliente, ao optar pela “burocracia profissional”, supera este problema. De facto, se “cada agente sabe exatamente o que fazer a seguir ao que o outro fez” (como nas deixas teatrais), não ocorre discutir se o ato compete a um ou compete a outro, ainda mais porque o principio da responsabilidade arbitra as questões que se podem levantar ou os erros que se podem cometer.

Curiosamente, deparamo-nos aqui com uma situação quase paradoxal. Nos manuais correntes de gestão a equipe cirúrgica e a orquestra sinfónica são dadas como modelo acabado e desejável da burocracia profissional, em Portugal os serviços do SNS estão aperreados pelo centenário “modelo clássico da organização”, a burocracia de Weber, do qual é extremamente difícil evoluírem para algo mais conforme com o tempo que se avizinha. Como será quando os robôs se “sentarem à mesa” com os médicos?