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A intuição do doente

Autor: Mélina Carvalho Lopes, médica interna de 4º ano de formação específica de MGF na USF MaxiSaúde (ACeS Cavado I Braga)

 

Sabe-se que o cancro da mama é o tumor mais comum em todo o mundo e a segunda causa de morte em mulheres.1 Apesar de não ser dos mais letais, tem uma elevada incidência.2 Em Portugal, com uma população feminina de 5 milhões, surgem 6000 novos casos de cancro da mama por ano, o que se traduz em onze novos casos e quatro mortes por dia.2 Perante estes dados, criou-se um conjunto de recomendações, de âmbito nacional, com o intuito de orientar o diagnóstico e o tratamento do cancro da mama.3 Contudo, estas recomendações não podem constituir uma barreira para a individualização das decisões diagnósticas ou terapêuticas, considerando a grande diversidade de opções disponíveis atualmente e o direito dos doentes de participar ativamente nas decisões que dizem respeito à sua saúde. 2

Partilho então uma experiência que me surpreendeu e me fez questionar algumas decisões. Uma senhora de 48 anos, com antecedentes de quistos mamários na mama esquerda e um nódulo distrófico na mama direita, recorreu a uma consulta de adultos, marcada pela própria, mostrando-se preocupada por ter notado a presença de novos nódulos mamários, além dos já conhecidos. Após o exame físico, requisitei uma ecografia mamária, que se revelou sobreponível às anteriores. Tranquilizei a senhora, que mantinha, no entanto, a preocupação relativa à presença de novos nódulos. Dirigiu-se à carrinha de rastreio organizado de cancro da mama e realizou mamografia de rastreio. Após alguns meses, regressou à consulta com o resultado da mamografia: BI-RADS 2, lesão com características benignas. Apesar dos resultados negativos dos exames, a preocupação manteve-se e recorreu ao serviço de urgência do hospital de referência, onde realizou nova ecografia mamária, que confirmou a presença dos mesmos quistos. Não conformada, recorreu a um ginecologista em regime privado, que repetiu a ecografia, tendo o resultado sido sobreponível aos anteriores. Porém, pela intuição de que algo estaria diferente, a senhora insistiu que desejava ser submetida a uma biópsia dos nódulos. Mais tarde, e para minha surpresa, o resultado anatomopatológico da biópsia revelou tratar-se de carcinoma ductal invasor. Referenciei-a a consulta externa de senologia do hospital de referência, onde foi submetida a tumorectomia do quadrante superior interno da mama esquerda e quimioterapia.

Há três casos descritos na literatura que demonstraram que mulheres com palpação anormal da mama e estudo imagiológico negativo podem apresentar malignidade.4, 5 Num caso como o descrito, em que já existe patologia benigna da mama, a distinção entre nódulos benignos e malignos utilizando apenas os critérios imagiológicos nem sempre é fácil e fidedigna. A evidência atual apoia a vigilância da patologia benigna da mama através da repetição dos exames imagiológicos de seis em seis meses até um período de dois anos, considerando-se esta abordagem mais benéfica do que a realização de biópsia.6

Apesar de a evidência científica defender uma atitude expectante em casos como o descrito, é importante que nós, enquanto médicos de família, consideremos e tenhamos em conta a intuição dos nossos doentes. No entanto, nem sempre encaramos a intuição dos doentes como credível ou importante.7

A nossa especialidade tem um papel privilegiado na avaliação da credibilidade da intuição do doente, dada a continuidade dos cuidados que prestamos e o conhecimento biopsicossocial que temos dos nossos doentes. Este caso mostrou-me a importância de tentar sempre incluir a intuição do doente na tomada de decisão e de procurar desconstruir ideias pré-concebidas quando esta intuição não parece adequada à situação, o que contribui para reforçar a comunicação e fortalecer a relação médico-doente.

 

Referências bibliográficas:

  1. Recomendações nacionais para diagnóstico e tratamento do cancro da mama; Alto Comissariado de Saúde
  2. Liga Portuguesa Contra o Cancro: www.ligacontracancro.pt; Programa de Rastreio do Cancro da Mama.
  3. Norma da Direção Geral da Saúde. ” Mama; ecografia mamária; mamografia” 051/2011; 27/12/2011.
  4. Moy L, Slanetz PJ, Moore R, et al. Specificity of mammography and US in the evaluation of a palpable abnormality: retrospective review. Radiology 2002;225:176e81.
  5. Durfee SM, Selland DG, Smith DN, et al. Sonographic evaluation of clinically palpable breast cancers invisible on mammography. Breast J 2000;6:247e51.
  6. Leão, A.S, et al. “Classificação ultrassonográfica dos nódulos sólidos da mama”; Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP); Experts in Ultrasound: Reviews and Perspectives; EURP 2010; 2(2): 51-54.
  7. Stephen A. Et al.; When Should Patient Intuition be Taken Seriously?; Buetow and Mintoft: Patient Intuition