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A fé, critério contaminador da ciência

Autor: M.M. Camilo Sequeira

A fé sendo um valor absoluto não demonstrável não pode ser critério utilizável pela ciência. Infelizmente está (por vezes) a sê-lo.
A fé é um valor muitíssimo generalizado, mormente o religioso, que me merece respeito porque oferece ao crente uma pretendida verdade sobre a qual este constrói uma forma do viver com conforto e esperança. E se for valor que cada crente partilhe com o outro respeitando-o na sua diversidade nada há de mau no ter-se fé.
No entanto perceber a presença de crenças no nosso dia a dia e respeitá-las não significa aceitar que uma verdade absoluta não demonstrada seja pura e simplesmente “a” verdade. Não é!
Ter fé e viver em nome dessa fé, deixando que o outro faça exactamente o mesmo, não tem qualquer importância para o quotidiano da comunidade dos seres humanos. Até podendo ser útil para muitos. Mas se for utilizada pela ciência como complemento securizante das suas verdades de mais difícil demonstração terá, dramaticamente, grande e grave repercussão sobre a vida da mesma comunidade de seres humanos e, neste caso, sem qualquer óbvio aspecto positivo.

A neurociência

Há actualmente uma extraordinária actividade científica, complexíssima, orientada para a compreensão do que é o específico do pensamento, da cognição, da emoção.

As conferências e as publicações multiplicam-se com os cientistas a tentarem dar informação simples e clara sobre o seu trabalho. Procuram que os ouvintes e os leitores acompanhem as suas experiências, as reflexões que estas implicam e as novas vias de investigação que essas reflexões favorecem. Divulgam a partilha sistemática de saberes entre os diversos grupos de trabalho e o que essas discussões criam de novidade e de novas perspectivas de experimentação.

Percebemos, ora mais ora menos, que cada nova vitória é um passo gigantesco para responder à dúvida que os determina: como se cria a cognição? Porque se cria o pensamento e como se justificam as emoções?

E também, seremos mesmo diferentes dos outros seres vivos? E se o formos… como é que o somos?

Ler um artigo de neurociência é um bálsamo para a nossa vaidade por termos nascido ser humano e não com qualquer outra arrumação atómica que nos faria ter sido algo em que nem queremos pensar. Embora conscientes de sermos um incidente biológico também estamos conscientes da sorte que é o sermos o melhor incidente a que se pode aspirar.

A cada vez maior capacidade de associar a áreas específicas do sistema nervoso várias das nossas acções identitárias, a quase certeza de essas mesmas áreas se poderem encontrar noutros seres vivos mas sem o específico da nossa identidade porque sendo parecidas são de facto diferentes, talvez baste como justificação do nosso lugar no mundo, no vértice superior de qualquer cadeia de comparação com o que quer que seja.

Somos especiais. E fomo-nos tornando cada vez mais especiais com as transformações que a evolução nos foi “oferecendo”. Afastando-nos todos os dias dos outros parecidos no passado que, na actualidade, são profundamente diferentes.

E a compreensão desta construção evolucionista dá coerência às diferenças que julgamos ter em relação aos outros animais e dá sentido lógico às interpretações que a biologia vai fazendo de alguns particulares que, em boa verdade, se parecem afastar do conceito clássico de Biologia. Será a cognição um específico biológico como a necessidade de comer, de beber, de procriar?

Assim vamos ganhando saber, competência interpretativa e percebendo que a luz do conhecimento se vai deixando observar. Lentamente e de forma progressiva os cientistas chegaram a um tempo na investigação que lhes permite afirmar, demonstrando-o com exemplos e objectivação pela tecnologia, o processo biológico que “inevitavelmente” conduz ao pensamento abstracto, à cognição e à expressão da emoção. Acreditam ter conseguido confirmar cientificamente esse “inevitável” que consideram ser a natural consequência do seu trabalho.

Mas será que, de facto, o terão conseguido? Julgo que a leitura das suas experiências parece mostrar, pelo menos ao céptico, que não será exactamente assim. Os cientistas descrevem o seu esforço de forma particularíssima esclarecendo todo o ganho de informação bioquímica com um rigor inultrapassável. Mas quando passam deste rigor descritivo para a conclusão sobre a cognição parece que “concluem assim porque não podia deixar de assim ser”. Dito de outra forma, a necessidade de obter essa conclusão, de encontrar a resposta exacta para a sua pesquisa, afasta-os do rigor exemplar até então demonstrado. De facto o que referem é a sua fé na inevitabilidade daquela conclusão. Como critério científico.

Mas ao leitor é evidente que entre o rigorosíssimo da última informação bioquímica e a primeira afirmação da sua pretendida consequência há um hiato de ciência. Há uma falta de precisão científica. Há qualquer elemento científico que ainda se não revelou.

Mas o Neurocientista precisa dessa conclusão. Não pode aceitar que todo o seu investimento intelectual em vez de mostrar de forma inequívoca que chegou à solução do que procurava possa ser contestado mormente pela utilização de outros argumentos que “demonstrarão” que essa solução não tem suporte “científico”.

Que lhe falta, para ser uma conclusão de ciência pura, algo desconhecido ou incompreensível. Por maior que seja o reconhecimento do carácter científico de todo o plano de investigação.

Por exemplo não pode aceitar que se argumente que tudo que se tem aprendido com o seu esforço seja simplesmente uma expressão algorítmica de um fenómeno que só tem de original o pretendermos que o seja.

Que tudo seja, para tudo, um incidente sem ordem, sem lógica, sem um sentido que defina cada específico das funções superiores que nos fazem diferentes dos outros seres vivos. E que a cognição também o seja.

Mesmo querendo acreditar no científico das conclusões dos neurocientistas sobre a formação da cognição, mesmo admitindo que no futuro o que agora é baço se torne mais claro e se torne claro sob a forma em que estes cientistas acreditam hoje parece ao leitor sem a sua formação que ainda não é possível aceitar as suas conclusões.

As justificações que propõem para apoiar a conclusão que nos diversos estudos antecede imediatamente o nascimento da cognição e das emoções não são, ou ainda não são, claramente científicas. Pelo menos não o são como tudo o que é estudo imediatamente anterior a essa conclusão parece ser.

E concluir que é verdade o final interpretativo de um fenómeno biológico apenas porque não pode deixar de ser assim é esquecer a ciência que permitiu chegar até imediatamente antes desse final. É oferecer ao abstracto insondável da fé um valor como argumento científico que qualquer fé não possui.

A economia

Hoje estamos a viver num tempo de diversas e muito rápidas transformações sociais com a economia, considerada como ciência, a dominar quase toda a organização quotidiana da vida do ser humano. Mesmo a relacionada com a privacidade e o direito de reserva. A relevância desta ciência confirma-se pela sua omnipresença em quaisquer das múltiplas actividades relacionais que associamos ao ordinário do viver.

Pelo que me parece ter sentido que uma tão acentuada dependência desta ciência, que uma tão acentuada interferência objectiva desta ciência na nossa vida, seja o resultado de um conjunto de certezas adquiridas cientificamente demonstradas.

Mas será que a história que nos contam sobre a razoabilidade desta subserviência em relação à economia está correctamente contada?

Os novos meios de promoção de uma economia que seja continuamente crescente assentam no desenvolvimento tecnológico interactivo entre o físico, o digital e o biológico que já está em curso. Esta via que estamos a percorrer é causa, de acordo quase unânime com as diversas escolas de economia, de redução da empregabilidade, de redução do preço do trabalho, de instabilidade e ausência de continuidade de quase todo o tipo de actividade por conta de outrem e de uma inevitável acentuação das já hoje inaceitáveis condições de desigualdade social (1% da população detinha 50% de valor activo em 2015. Na segunda metade da tabela os seus 50% detinham menos de 1% de valor activo. Dados do Global Wealth Report 2015).

Este futuro que julgo só poder ser referenciado como negro é, ainda de acordo com a muito grande maioria dos economistas, inevitável.

Sendo reconhecido que a sua consequência em termos sociais é um crescendo de violência sem paralelo, porque veiculada por agentes e meios que ainda não conseguimos imaginar, um acentuar da instabilidade política com o aparecimento de críticas à democracia de difícil resolução e o aumento (exponencial?) da doença mental pela desadaptação à nova realidade e da doença física por insuficiência material de cada vez mais trabalhadores para garantirem a sua subsistência com um mínimo de dignidade.

É, pois, um quadro síntese deste tipo que parece ser o futuro: élites cada vez menos numerosas concentrando a maior parte do valor mas incertas na segurança quer do seu estatuto quer da sua pertença a essa élite, uma classe média em extinção por sistemático empobrecimento e uma multidão de excluídos por razões as mais diversas mas todas relacionadas com o progresso económico.

A leitura de qualquer ensaio sobre a economia do futuro, que já é muito presente, mostra sempre este quadro social e descreve muita de preocupação que também estes académicos sentem face às consequências desta expressão do progresso.

Aparentemente este é um círculo fechado sem alternativa. Mas parece que os que o descrevem e lhe reconhecem os graves problemas sociais associados são incapazes de ficarem por aí. Talvez o dramático do que descrevem seja tão inaceitável que precisam de o aliviar.

E por isso muitos, os chamados tecno-optimistas, depois da descrição do problema decidem acreditar e fazer acreditar que, apesar de tudo, esta “evolução” da economia compensa esses problemas porque também tem o potencial de criar novas formas de trabalhar, novos empregos, novas relações entre mandantes e subordinados que, pelo menos, reduzirão a importância dos conflitos sociais.

E mesmo que os seus estudos mostrem o contrário disto mesmo (o crescimento de novos tipos de trabalho associados às novas tecnologias tem tido um decréscimo acentuadíssimo desde a década de 1980 segundo dados dos Estados Unidos da América) o que dizem é que a dinâmica deste novo mercado interactivo, interligado, cooperativo, implica variáveis de análise dos seus benefícios que os sistemas estatísticos actuais não sabem avaliar. Ou seja os números mostram resultados negativos porque não sabem avaliar o que pretendem. A realidade será (para alguns já é) diferente do que esses estudos estatísticos revelam.

E acreditam que assim é porque, dizem, a história mostra que sempre que se viveu uma mudança tecnológica ocorreram situações complexas e conflitos. Mas que no final o que se verificou foi ter havido um aumento de produtividade global, um aumento de procura de bens e um aumento dos tipos de trabalho. E se sempre foi assim não há motivo para acreditar que agora seja diferente.

Dito de outra forma: têm fé num determinado destino. Acreditam que se as necessidades humanas são infinitas também a distribuição dos benefícios do progresso devem ser infinitas. Mas será que esta forma de interpretar os dados da ciência económica é científica? Ou será o recurso à fé uma contaminação dessa ciência com um desejo não científico?

Conclusão

Há mais de 30 anos quando surgiram os primeiros livros de divulgação da investigação astrofísica, escritos pelos próprios cientistas, a informação de cada ganho de saber era acompanhada pela consciência muito precisa da dimensão de ignorância que ainda tinha de ser percebida. E eventualmente, como se desejava, ultrapassada.

Estes divulgadores quando procuravam descrever o que era então insondável deixavam perceber (ou eu assim o achava), como hipótese não afirmada mas sugerida, que esse escuro de dimensão próxima do absoluto talvez fosse divinizável.

Para os crentes religiosos esta hipótese era a demonstração do achamento de deus pela ciência. Mas não creio que fosse essa a intenção dos cientistas.

No entanto mesmo que o fosse para alguns julgo mais correcto afirmar-se que a percepção pelo cientista do que existia como desconhecido parecia tão longe de poder ser estudado ou descoberto como era (e é) impossível descobrir a divindade.

Nunca percebi que quisessem afirmar como verdade, mesmo relativa, uma qualquer interpretação sua desse desconhecido pretendendo que “só poderia ser assim por ser essa a sua convicção”.

Teorizavam deificando o desconhecido que estavam impedidos de compreender mas não defendiam, pela fé, pela sua certeza não demonstrada, uma determinada maneira de tornar compreensível esse desconhecido.

A minha convicção é que outros cientistas perante complexidades similares e quiçá como reacção à exigência de respostas que tanto caracteriza o nosso tempo em vez de reconhecerem que estão a caminhar para uma verdade científica mais ou menos distante se deixam enredar nesta compulsão de respostas imediatas dando à sua fé, ao seu desejo de chegar às soluções que procuram, o valor absurdo de critério científico.

O que a fé, qualquer tipo de fé, por maior que seja a idoneidade de quem a afirmar… não é.

Quer a Neurociência, quer (talvez) a Economia vão num futuro que se deseja breve encontrar respostas para os problemas que estudam. Nessa altura a saúde mental terá saberes novos e tratamentos dirigidos e a saúde física terá outras formas de promoção e protecção ainda desconhecidas.

Mas com base em ciência como a continuamos a respeitar e sem contaminação por desejos legítimos mas com fundamento não científico. A fé no que quer que seja não é ciência. Mesmo que afirmada por cientistas.