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A centelha

Autor: João Miguel Nunes “Rocha”

A centelha – que animou uma porção de água inquinada por outras moléculas e átomos e lhes deu forma, vida e funções, e a capacidade de se reproduzirem e evoluírem como seres unicelulares potencialmente imortais, ou de se reunirem em organismos multicelulares cuja geometria plástica com limites espaciais, ansas cegas, recônditos… acarreta consigo a própria morte do individuo (mesmo que não houvesse um número limitado de mitoses imposta às células) quer tenha resultado da vontade de um Deus Criador quer da mera conjunção fortuita de factores é tão assombrosa que por enquanto nos transcende e nos escapa e nos veda qualquer pretensão ou direito de fazer o papel de Deus ou de Tânatos,  já que nos falta a capacidade de dar “animus”. É-nos fácil suprimir mas refazer é outra conversa, tolhidos pela incapacidade e pela ignorância.

A medicina Hipocrática, que privilegiámos, sempre procurou curar a doença, aliviar o sofrimento, prolongar a vida e agora que brotam resultados ténues, é bem triste que certas democracias, ditas inclusivas, com promessas constitucionais de protecção  de todos e também e sobretudo dos débeis, dos doentes, dos velhos, dos incapazes, nos venham com a história da eutanásia como panaceia do sofrimento, e sob o pretexto de que o individuo tem o direito de escolher não viver, se escancare a porta de um horrível e não admirável mundo novo, em que no fundo se dividem os homens em ricos e pobres, em novos e velhos, em doentes e sãos e se assume sub-repticiamente que só os ricos têm o direito à autodeterminação, porque os que o não forem, acossados pela doença ou pela velhice (que mesmo na saúde doi como o cilício de um monge: doi no desdém com que nos fitam, doi na pressa com que nos escutam, doi acutilante no ostracismo a que nos votam os que amámos, doi e enraivece na intenção obvia de nos quererem apressar o fim, doi no amor que se extinguiu como a luz de uma estrela cadente, para sempre), com sofrimentos que ninguém mitiga, com famílias que não os podem ter, com a autoestima abissalmente baixa são enleados por uma teia que os prende e os empurra para o “poço sem fundo”, a bem ou a mal, voluntariamente ou simulando voluntariado.

Há, entre os colegas, até quem advogue já, como excessivo, administrarem-se a doentes crónicos com prognóstico fatal a médio prazo, medicamentos que inquestionavelmente prolongam a vida como as Estatinas, os antiagregantes plaquetários e outros… considerando-se que está a onerar-se a família do doente ou os seus cuidadores, escusadamente. Esta aceitação da inutilidade de certas vidas, ultrapassa os deveres do médico e obviamente, os seus direitos. É esta banalização da morte, que torna a eutanásia horrenda porque apesar do instinto de sobrevivência nos proteger da autodestruição até certo ponto, é tão fácil empurrar um doente neoplásico, um velho, um entrevado crónico para a morte… julgar da validade da vida do outro é algo de que nos devemos abster para não nos vermos confrontados com a avaliação da validade da nossa.

O que era verdadeiramente importante, se nos últimos vinte anos do século passado e nos primeiros vinte anos deste, o interesse destas marionetes de carreira, não fosse servirem-se e ascenderem servindo os lóbis, os interesses obscuros, as falcatruas, era restituir aos cidadãos o SNS, que bem gerido, e arredadas que forem as parcerias público-privadas, é o mais eficaz, o que oferece maior confiança e o mais barato, porque explorado no sentido, não de arrecadar lucros,  mas que se centra e concentra, em tratar segundo a “leges artis”, sem olhar à carteira de cada um. Era assim no seu apogeu, exijamos à classe política que volte a sê-lo, porque de facto foi a maior conquista de Abril. As outras, foram-se dissipando pelos “herdeiros”